A lei da droga em Portugal e a sua aplicação: orientações legislativas
Por Margarida Leitão Ferreira – Advogada*
Este artigo foi originalmente publicado na edição #1 da Cannadouro Magazine
Quando falamos na lei de combate à droga em Portugal queremos referir-nos ao DL 15/93 de 22 de Janeiro. Deste texto e no seu preâmbulo extraímos o seguinte excerto:
“…Tal instrumento de direito internacional público visa prosseguir três objetivos fundamentais. Em primeiro lugar, privar aqueles que se dedicam ao tráfico de estupefacientes do produto das suas atividades criminosas, suprimindo, deste modo, o seu móbil ou incentivo principal e evitando, do mesmo passo, que a utilização de fortunas ilicitamente acumuladas permita a organizações criminosas transnacionais invadir, contaminar e corromper as estruturas do Estado, as atividades comerciais e financeiras legítimas e a sociedade a todos os seus níveis. Em segundo lugar, adotar medidas adequadas ao controlo e fiscalização dos precursores, produtos químicos e solventes, substâncias utilizáveis no fabrico de estupefacientes e de psicotrópicos e que, pela facilidade de obtenção e disponibilidade no mercado corrente, têm conduzido ao aumento do fabrico clandestino de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas. Em terceiro lugar, reforçar e complementar as medidas previstas na Convenção sobre Estupefacientes de 1961, modificada pelo Protocolo de 1972, e na Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas de 1971, colmatando brechas e potenciando os meios jurídicos de cooperação internacional em matéria penal...” – negrito nosso.
Vejamos que os objectivos da lei mais não eram do que uma transposição para o ordenamento interno português da Convenção em vigor desde 1972. Como se pode ver, o legislador tinha, de alguma forma e passadas duas décadas desde a entrada em vigor desse conjunto de normas internacionalmente reconhecidas, a necessidade de regulamentar através de uma legislação nacional adequada ao contexto português e sua realidade axiológico-jurídica.
Um estudo do Eurobarómetro realizado em 1997 mostra que os portugueses percepcionam as questões relacionadas com a droga como o principal problema social do país. Treze anos depois, em 2000, quando a nova lei de descriminalização do consumo de drogas começou a ser implementada, as drogas passaram a ocupar o 13º lugar na lista das questões sociais que maior preocupação causava aos portugueses. Uma melhoria, portanto.
A lei de descriminalização do consumo de drogas em Portugal (Lei 30/2000) foi pioneira, pela forma como implementou alterações legislativas, descriminalizando a posse de drogas, desde que ficasse comprovado que as doses na posse do consumidor seriam destinadas apenas ao seu consumo.
No que toca à canábis em concreto, desde logo o problema melhorou, claro, mas apesar de não ser crime consumir canábis, podendo cada pessoa ter consigo cerca de 25 gramas de flores ou 5 gramas de haxixe, é proibido comprar e vender. Então, na vida real, de onde são oriundas as chamadas drogas leves?
Em termos judiciais, os processos foram tratados de forma muito mais orientada para a integração do toxicodependente, passando as decisões judiciais a tratar os arguidos não como a causa do problema mas como cidadãos que sofrem com o problema social da venda ilícita de substâncias perigosas e aditivas. Para os políticos portugueses, a toxicodependência passou a ser encarada como uma doença que a lei deveria prevenir, e os toxicodependentes deveriam ser considerados, perante a lei, como doentes que necessitam de assistência e não como criminosos.
A política pensada foi orientada para dar resultados positivos, devendo abranger várias áreas que resultam na obtenção do escopo final, ou seja focar-se em vários aspectos como a prevenção, dissuasão, redução de riscos e danos, tratamento e reinserção social.
Nos tribunais portugueses, vemos que a canábis continuou a liderar os casos de condenação com uma diferença muito considerável para as restantes substâncias. Percebemos que no nosso país os tribunais e os seus decisores podem ter critérios de decisão divergentes, bastando para isso que tenham percepções distintas acerca do ilícito ou da substância.
Vai para além do julgador que, face a uma lacuna na Lei 30/2000, se continuem a condenar pessoas em Portugal por consumo de droga, com aplicação de penas de prisão. Na verdade, através dos relatórios do SICAD verificamos que, desde 2011, têm sido acusadas por ano duas a três mil pessoas por crimes relacionados com drogas e dessas 1900 a 2500 resultam em condenação.
A maioria das condenações são por crime de tráfico, mas desde 2015 podemos atestar que as condenações por consumo têm aumentado consideravelmente. Estes crimes estão em cerca de 80% associados à Canábis.
A maioria das pessoas são condenadas por tráfico (1500 a 2000), mas desde 2015 têm aumentado as condenações por consumo, que foram subindo da casa das quatro centenas até chegarem a 774 em 2018. A grande maioria (82%) dos consumos sancionados são de canábis. A maioria dos consumidores são condenados com multas (689), mas o relatório refere que 53 foram condenados a prisão com pena suspensa e onze a prisão efectiva.
Caixa: Daqui extraímos que Portugal continua a aplicar a lei e a praticar a condenação de pessoas por consumo de droga apesar de, supostamente, ter descriminalizado esse consumo. Este contrassenso legal tem a sua génese numa lacuna jurídica que tem gerado debates entre juristas.
A lei 30/2000 descriminalizou o consumo, aquisição e detenção de drogas para consumo próprio, mas apenas para quem fosse encontrado com “a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de dez dias”, ou seja, quem fosse apanhado na posse de quantidade para mais do que 10 dias de consumo, ficaria num limbo jurídico que a lei não definia. Perante decisões de sentido contrário nos tribunais, um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça acabou por escolher a terceira vertente: quem for encontrado com mais de 10 doses de consumo diário incorre no crime de consumo de droga. Apesar das discordâncias, o acórdão 8/2008 do STJ foi aprovado, fez jurisprudência e abriu assim de novo a porta para os tribunais condenarem pessoas pelo crime de “consumo de droga”. Embora muitos não o façam, alguns fazem, e as condenações têm crescido, ultrapassando agora as sete centenas. Segundo o relatório anual do SICAD, “em cerca de 98% das condenações por consumo em 2017 foi feita a referência expressa a este Acórdão”.
Entre os que se opuseram a esta subversão do princípio de descriminalização do consumo, alguns consideraram que seria necessária uma alteração da lei para retirar o alçapão jurídico que levou à situação actual. O juiz conselheiro (isto é, do STJ) Eduardo Maia Costa, autor do livro de 1998 “Direito Penal da Droga – Breve História de Um Fracasso”, criticou em Fevereiro, no blogue Sine Die, as 723 condenações por consumo de droga como “o mais elevado número de sempre”.
O acórdão do STJ 8/2008 continua a fazer estragos. Em declarações ao DN, o juiz Eduardo Maia Costa afirmou que a solução é “esclarecer a questão por via legislativa, considerando de uma vez por todas revogado o artigo 40º da Lei 15/93”, a lei anterior que criminalizava o consumo e que foi recuperada em parte pelo acórdão.
João Goulão, presidente do SICAD e rosto principal da política de descriminalização desde 1999, critica também o “entendimento enviesado da legislação: o objectivo era que não acontecesse que o consumo levasse à condenação”, acrescentando que “se calhar é boa altura de repensarmos isto e aperfeiçoar a lei, retirando essa lacuna”.
Aguardamos pacientemente que a sociedade se organize, por forma a possibilitar aos pacientes o consumo autorizado de forma igualitária. Respondendo à questão que colocámos atrás: de onde provém a canábis para uso adulto, vulgarmente designado como uso recreativo? Depende exclusivamente da oferta do mercado negro, fruto do tráfico, pois em Portugal não existem locais como coffeeshops, autorizados na Holanda, ou clubes sociais de canábis, como os regulamentados em Espanha, onde se possa comprar e utilizar canábis em segurança, com um mínimo de qualidade e contribuindo para a economia legal, através do pagamento de taxas e impostos.
E o que são, afinal, as lojas de canábis que já abriram em várias cidades de Portugal?
São espaços apelidados de “Cannabis Light”, que reivindicam o direito a vender produtos derivados do cânhamo industrial, ricos em CBD e com menos de 0,2% de THC. Apesar de a Comissão Europeia já ter reconhecido que o CBD não é um narcótico, no nosso país essa legislação não existe ou não é reconhecida, e estas lojas ainda sofrem muitas represálias por parte das autoridades, como a Polícia Judiciária ou a ASAE.
Assim se conclui que, além da urgente revogação do artigo 40º da Lei 15/93, é necessário clarificar a zona cinzenta onde o CBD se encontra, e em bom rigor, torna-se evidente que toda a legislação baseada na proibição deve ser repensada.
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* Licenciada em Direito em 2005, com estágio concluído e membro da Ordem dos Advogados desde 2007, Margarida Leitão Ferreira praticou advocacia entre Porto, Matosinhos e Vila Nova de Gaia durante 15 anos consecutivos, exclusivamente na área do Direito civil, bancário e Direito executivo. Em 2015 ingressou na área imobiliária e dedicou-se também ao estudo da canábis no âmbito jurídico e dos vários desafios que este tema representa. A canábis tem vindo a desempenhar um papel significativo no seu percurso pessoal e profissional.