A indústria da moda é uma das mais poluentes do planeta e Marta Vinhas está focada em encontrar alternativas para uma maior sustentabilidade no sector têxtil, onde trabalhou mais de 18 anos. Há vários séculos que o cânhamo é utilizado para confeccionar roupa e outros tipos de fibras e tecidos e Marta está agora a trazê-lo de volta a Portugal, com um toque de design e inovação. Criou a marca de roupa e acessórios Sensihemp e até já ganhou um prémio internacional com a T-Shirt ‘Onion Plus’, tingida com cascas de cebola.
Marta Vinhas nasceu em Santo Tirso e concluiu o curso Técnico Profissional de Artes e Ofícios. Sonhou estudar arquitectura, mas aos 18 anos acabou por iniciar o seu percurso profissional no ramo automóvel, como operadora fabril, passando mais tarde para a indústria têxtil, onde trabalhou durante 18 anos. Apaixonada pela Natureza, pelos animais e pelas artes, descobriu a fibra e o ciclo do Linho num projecto de voluntariado, que a incentivou a desenvolver malha em cânhamo e a confeccionar roupa em Portugal.
Do sonho fez-se realidade e Marta criou a Sensihemp, para aproveitar as vastas aplicações do cânhamo e oferecer uma variada gama de produtos à base destas fibras, desde artigos têxteis, como roupa e calçado, à cosmética. “Quis criar uma linha de roupa ecológica e sustentável com o cânhamo, dando a oportunidade de fazer produção white label ou parceria com outras marcas”, contou-nos.
Marta diz ainda que procurou “uma visão abrangente de todos os benefícios do cânhamo para a sociedade, não só em questões de saúde como em termos ecológicos”. No mercado há cerca de dois anos, a Sensihemp está a assumir um papel de destaque e pioneirismo como marca de roupa de cânhamo produzida em Portugal, desde o fio ao tecido e à confecção das peças, sem esquecer a tinturaria. No ano passado, foi distinguida com o prémio de melhor produto de inovação na feira internacional CBD Hemp Business Fair, que decorreu em Barcelona entre 7 e 9 de Outubro de 2022. O produto galardoado? Uma t-shirt feita com malha de cânhamo e tingida com cascas de cebola. Este ano, ganhou também o projecto WORTH Partnership Project da Comissão Europeia, em parceria com Annette Lennerup, de Espanha, tendo sido seleccionada como Worth Exhibition para a Milan Design Week, em Itália. E foi ainda convidada a expor na Spannabis, sendo que a famosa feira de Barcelona tem uma lista de espera de anos.
Falámos com Marta Vinhas e ficámos a saber que, mais do que uma marca de moda sustentável à base do cânhamo, a Sensihemp pretende construir um ecossistema inovador na indústria têxtil.
Com quase duas décadas de experiência, como caracterizas o estado da indústria da moda no mundo?
A indústria da moda é uma das maiores e mais intensivas indústrias humanas na utilização de recursos naturais, sendo responsável por 4% das emissões de gases de efeito estufa e 20% da poluição industrial da água em todo o mundo. Muitos trabalhadores enfrentam desigualdade social, ambientes perigosos, colocando diariamente em risco sua saúde e até a vida. As pessoas ainda morrem regularmente em incêndios, acidentes ou envenenamento em fábricas. Embora os salários tenham aumentado em alguns países onde o vestuário é produzido, muitas pessoas na cadeia de suprimentos ainda ganham muito pouco e lutam para pagar as necessidades mais básicas da vida. As mulheres no sector têxtil sofrem com a desigualdade salarial, muitas vezes enfrentam assédio sexual e violência no local de trabalho. Todos esses problemas ressaltam a necessidade de repensar drasticamente como todo o sistema funciona. Acredito que, com mudanças sistémicas e estruturais, a indústria global da moda pode tirar milhões de pessoas da pobreza e proporcionar-lhes meios de subsistência dignos.
O que é isso de “greenwashing” e de que forma é que a Sensi Hemp pretende realmente contrariar a lógica produtiva da indústria têxtil?
O tema da sustentabilidade ganhou popularidade nos últimos anos e com a nova estratégia da União Europeia para a indústria têxtil o “greenwashing” disparou. No têxtil, muitas vezes é difícil discernir as marcas que estão verdadeiramente comprometidas com a sustentabilidade e aquelas que a usam apenas como estratégia de marketing, sem realmente abraçar esses valores, por isso é necessária mais transparência. A sustentabilidade assenta em três pilares fundamentais: factor ambiental, social e económico. As marcas alegam seguir as leis ambientais e laborais, mas usam empresas subcontratadas, diminuindo assim a transparência e dificultando a responsabilização por eventuais violações, ou alegam a utilização de materiais sustentáveis. Contudo, deslocam a produção para países longínquos, onde as leis laborais e ambientais são quase inexistentes, aumentando assim os seus lucros, sem realmente pensar nas pessoas e no planeta. Outras fazem propagandas de que são sustentáveis e éticas, que pagam um salário-mínimo aos seus empregados e não usam mão de obra infantil, mas, na verdade, só estão a cumprir a lei em vigor porque são obrigados. Na Sensi Hemp acreditamos que é nossa responsabilidade repensar a forma como as roupas são desenhadas, feitas e consumidas. É por isso que temos como missão criar produtos com ética e consciência e desenvolver soluções inovadoras e regenerativas, que permitam vencer os desafios actuais da indústria têxtil. Acreditamos verdadeiramente que o cânhamo é uma solução.
Um dos lemas da Sensi Hemp é trabalhar o mais possível a nível local. Como o fazem?
Contamos com a colaboração de artesãos e costureiras portuguesas para cumprir o objectivo de preservar o “saber fazer” português e as técnicas tradicionais. Trabalhamos para que toda a produção seja feita em Portugal, numa zona geográfica próxima, de forma a, por um lado, diminuir a pegada de carbono, e por outro, permitir que os diferentes elementos da cadeia de fabrico trabalhem entre si, obtendo assim importantes sinergias e promovendo uma verdadeira economia circular. Também recorremos a métodos com baixo impacto ambiental, tais como os tingimentos naturais, desenvolvidos a partir de plantas, raízes e minerais, isentos de químicos e que requerem menos água.
Qual pode ser o papel do cânhamo no contexto das alterações climáticas?
O uso do cânhamo traz diversos benefícios para a indústria e para o meio ambiente. O seu cultivo regenera os solos e é CO2 negativo, não requer herbicidas nem agrotóxicos e gera uma maior produção de fibra por hectare quando comparado com outras fibras naturais. É necessário ter uma visão sistémica sobre a produção da fibra, os principais desafios para a sua implementação em larga escala na indústria têxtil, investir no desenvolvimento tecnológico e analisar as perdas e ganhos ambientais quando comparado com a produção do algodão, por exemplo. É também preciso lançar luz sobre as alternativas existentes, sobretudo quando se trata de alternativas cuja capacidade de contribuir para redução dos gases de efeito estufa é significativa, como é o caso do cânhamo.
A história do Rana Plaza e o movimento ‘Fashion Revolution’
O Fashion Revolution é o maior movimento activista de moda do mundo, mobilizando cidadãos e marcas que lutam por uma indústria da moda mais segura, justa, transparente e responsável, através de um trabalho contínuo de investigação, educação, colaboração, mobilização e de pressão política. Este movimento foi fundado por Carry Somers e Orsola de Castro, após o desastre do Rana Plaza, no Bangladesh, em 2013.
O colapso do Rana Plaza ocorreu na sequência de uma falha estrutural de um edifício comercial de oito andares, onde trabalhavam milhares de pessoas. O prédio continha fábricas de roupas, um banco, apartamentos e várias lojas. As lojas e o banco nos andares inferiores foram imediatamente fechados após a descoberta de rachas no prédio, motivados pelo excesso de peso da maquinaria têxtil dos andares superiores. Os proprietários do prédio ignoraram os avisos para fechar todo o edifício e os operários têxteis foram obrigados a regressar aos postos de trabalho no dia seguinte. O prédio acabaria por desabar durante a hora de ponta da manhã.
No acidente morreram 1.134 pessoas e aproximadamente 2.500 ficaram feridas. Foi considerado o acidente derivado de falha estrutural, não deliberado, mais mortal da história humana moderna e o acidente industrial mais mortal da história do Bangladesh. O edifício albergava várias fábricas de vestuário que empregavam cerca de 5.000 pessoas, que fabricavam roupa para marcas como a Benetton, Bonmarché, Prada, Gucci, Versace, Moncler, Children’s Place, El Corte Inglés, Joe Fresh, Mango, Matalan, Primark e Walmart. Na sequência deste desastre surgiu o movimento Fashion Revolution, que pretende influenciar as políticas e forçar os governos a regular e fiscalizar as práticas laborais e ambientais da indústria têxtil.
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Este artigo foi originalmente publicado na Cannadouro Magazine.