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Rui Reininho: “Eu acho esquisitíssimo andarem os meus colegas da GNR a meter o nariz nas propriedades das pessoas a ver o que é que esta planta faz”

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Rui Reininho no documentário "A Viagem do Rei", que conta a sua história. Foto: Afonso Sereno

Rui Reininho, músico português que ficou famoso enquanto vocalista dos GNR, dispensa apresentações. Ao contrário do que muitos pensam, não fundou os GNR, mas pode dizer-se que se tornou na sua alma. Nascido em 1955, no Porto, desde cedo se aventurou além-fronteiras, o que lhe permitiu viver experiências “marginais”, algo que sempre o seduziu. Apesar de não ser a sua substância de eleição, Rui Reininho contou-nos tudo o que viveu com a planta da canábis (e não só) e surpreendeu-nos. Indignado com os seus “colegas” da GNR, quando invadem as casas daqueles que optam por cultivar canábis em casa para consume próprio, afirma: “as autoridades são para proteger e servir e não para estar a incomodar as pessoas no seu ambiente, no seu repouso”.

Tivemos uma longa conversa com Rui Reininho, que nos abriu as portas da sua percepção.

Rui, como é que foi a tua infância?
Na baixa do Porto, uma infância minimamente feliz, um bocadinho solitária, mas, quando comecei a ter amigos e cúmplices, de facto, na época tínhamos acesso aos parques e jardins de uma maneira muito natural. Era muito normal, nas horas que tínhamos de folga, sairmos de casa e darmo-nos com toda a gente do bairro, principalmente aprender a andar de bicicleta, essas coisas todas, jogar à bola, uma coisa normalíssima. A minha escola era uma escola pública popular e tínhamos as ilhas, que é uma circunstância muito portuense até; os meus colegas que viviam nas ilhas, francamente, eram alguns dos que eu gostava mais, porque mostravam-me, de facto, uma vivência e uma vida muito sincera, muito pura e muito interessante. Eles podiam ser alguns… os futuros gunas, não é? (risos) Mais tarde, associou-se muito ao pessoal das ilhas, traficantes, avós e coisas assim, e eu realmente vivia ali perto e tinha curiosidade de ir à casa deles, ir lá comer pão com marmelada, e todas aquelas brincadeiras de infância e da adolescência, que também passei ali na Baixa do Porto. Comecei a sair bastante cedo do país. Daí talvez ter sido confrontado com outras realidades. Creio que para aí aos 16 comecei a ir a Inglaterra, menos de 20 anos, 17 anos andava ali por Amesterdão, Londres, Interrail, ir ao norte da Europa e então, de facto, aí fui confrontado… eu lembro-me e digo isto com o máximo de sinceridade: a primeira vez que passei uma fronteira de comboio foi precisamente… comprámos ali uma ervita na Holanda, que, na altura, era um país já muito liberal e, embora fosse penalizado, eles sempre foram muito permissivos. E depois tive esse hábito, sempre, de passar ali uma fronteira, ou com livros proibidos ou com essa circunstância. Essa “vida perigosa” sempre me interessou e o contacto com uma certa marginália e com uma certa realidade. Depois também… Eu estou quase em monólogo, puxa, não é? (risos)

Imagem retirada do documentário “A Viagem do Rei”, que conta a vida de Rui Reininho. Foto: Afonso Sereno

Eu ia dizer que toda esta experiência de sair do país te permitiu abrir os horizontes.
Exactamente, e nos anos 70 tínhamos a guerra colonial que infiltrou, digamos, um hábito, no caso do cânhamo e da marijuana, e foram realmente as tropas que vinham de Angola, e por aí fora, não é? Começou a ser hábito entre todos os grupos. Estupidamente, houve uma repressão (isto é a minha opinião) muito grande e, de um momento para o outro, tal foi a repressão sobre o que eles chamavam ali as drogas mais ou menos leves – para mim não há drogas leves nem pesadas, eu acho que as drogas, às vezes, escolhem-nos mais do que nós as escolhemos… Estou a pensar nos viciados em café, que as pessoas acham muito normal. Eu, por exemplo, não acho normal que uma pessoa diga: “Ai, eu para funcionar logo de manhã tenho que tomar dois, três cafés”. Isso sim, é ser agarradinho! (risos) E conheci gente em circunstâncias, como calculas, e mesmo não só neste meio musical, mas em todo o meio em que eu me mexia – fiz o curso de cinema em Lisboa e tal – em que as pessoas estiveram mesmo com dependências daquela drogaria chamada forte, heroína, por ali fora, não é? E sempre achei mais difícil – e conheci, felizmente, muita gente que se conseguiu safar da dependência, mas do cigarro muito dificilmente e tanto o cigarro como o café, como o álcool… quer dizer, o álcool é visto sempre assim com um certo desprezo, mas acho que toda a gente, nalguma circunstância, também já bebeu um copinho a mais, nem que seja para experimentar o efeito… ou para experimentar a ressaca, em alguns casos. (risos)

Estou a ver que tu conseguias fazer esta entrevista sozinho! Daqui a pouco não tenho perguntas! (risos)
E olha, depois, também tenho livrinhos como este. Não sei se se vê bem… [Mostra “O Rei Vai Nu” de Jack Herrer]

Claro, também tenho esse livro e o posfácio foi escrito pelo director da Cannadouro Magazine, o João Carvalho, que também faz investigação sobre o cânhamo.
Eu frequentava aqui, na baixa do Porto, uma casa que tinha produtos feitos a partir do cânhamo e sempre me seduziu. Aliás, posso mostrar a minha mochilinha, que já foi ao Nepal e veio. Chama-se Sativa e é feita de cânhamo, com que eu vou agora aos ginásios e essas coisas todas. É um dos meus troféus, digamos assim, mas de facto acho que, no caso da chamada ervita, a repressão levou muito depressa a que o negócio – claro, completamente underground, mas às vezes às vistas das pessoas – passasse imediatamente para heroínas e para cocaínas e para coisas desse género, e não o contrário, como se diz: “Ah, começa-se pelas drogas leves e tal, e depois aquilo é imparável! É um precipício.” Eu não concordo de maneira nenhuma. Foi a repressão policial, nomeadamente aqui nesta cidade, que eu presenciei, que vi, vá lá, assim num ano ou dois… a destruição das plantas, de engavetarem mesmo… tive um primo, precisamente, que estava a fumar o seu charrinho, foi para a esquadra, teve um processo; ele trabalhava na televisão, na RTP, foi ameaçado de despedimento e eu acho que foi, de facto, ali a repressão que fez com que as pessoas, no caso dos dealers, dos negociantes, pensassem assim “Bolas, se eu, por um saco de plástico e não sei quantos, sou penalizado, então mais vale meia dúzia de packs de heroína, que é mais fácil de ocultar, e o negócio e a expansão começou aí. E infelizmente – digo, infelizmente, porque não vou tirar o prazer ou o desprazer a ninguém das circunstâncias da sua vida, mas depois a vida torna-se muito difícil e as pessoas cometem crimes, pagam por eles, dão cabo do seu ritmo de vida. Entram noutro. Eu nem sequer quero moralizar… “sem moralizar”, como diz o outro na canção! (risos) Não tenho moral nenhuma relativamente a isso. Quanto às chamadas drogas mais leves, acho que também é uma posição muito moral e acho completamente errado alguém dizer: “Ah, sim, isto para fins terapêuticos… mas as pessoas não podem tirar prazer.” Paralelamente, é como a nossa Santa Igreja, e alguns dos nossos ideólogos, que dizem que sim, mas só para conceber, porque uma pessoa não pode ter prazer, e já vi uma afirmação em que bastam dois minutos para impregnar uma senhora, que o resto é luxúria, é pecado, é tudo. Eu acho completamente idiota esse pressuposto de que as pessoas não podem usufruir das coisas, não é? É como se uma pessoa tomasse um sonífero. “Você vai dormir, porque está com insónia, mas não pode sonhar. Sonhar é uma coisa… é terrível e tal, e leva-o a pensamentos profanos, impuros e enlouquecedores.” Sei lá. 

Rui Reininho em concerto a solo. Foto: Joana Linda

É censura, não é?… Sentiste censura ao longo da tua vida?
A polícia da mente, não é? Que é uma coisa que é atávica e, no nosso caso nacional, é muito, muito reaccionária. Como tudo: a utilização do corpo, a utilização dos meios… O que é que eu tenho a ver com os hábitos dos meus vizinhos, desde que eles não me importunem? Até às quinhentas, às vezes, tenho a beach party aqui ao lado, não me agrada muito, mas também não sou ali ranzinza; assim, vou aproveitar, vou passar o fim de semana fora, para não ter aqui os vidros a tremer, não é? Mas não vou para ali tentar boicotar ou proibir que as pessoas tirem prazer das suas actividades. É tudo uma questão de falta de liberdade e da manutenção da liberdade. Por isso, acho que este livrinho [O Rei vai Nu] é muito útil, é muito interessante e então, relativamente ao cânhamo, esclareceu-me imenso. E, segundo ouvi dizer, uma das questões pelas quais, lá está, os objectos, as roupas e tudo não são mais feitas de cânhamo é porque há um lobby muito forte do algodão, mundial, que estrangula, porque, a acreditar neste e noutros livros e noutras referências, o cânhamo necessita de menos água, não é? Portanto, o que é necessário para fazer uma t-shirt de algodão, acho que agora não sei, estarei se calhar a inventar, mas… 

Sim, é muito superior.
Uma t-shirt de cânhamo, uma camisa, umas calcinhas, utilizam muito menos água na prossecução da planta e a planta em si é muito bonita, é muito agradável, é uma planta muito pacífica. É um símbolo, praticamente, de paz mundial. Tem um bocado a ver com a bandeira do Líbano, salvo seja, não é, que também tem uma árvore. Nem todos os países se lembram de pôr uma árvore na sua bandeira. Normalmente é uma metralhadora ou uma foice e um martelo também pode ser bonito para quem combate! (risos) 

Ou um escudo!
Não sei se é a de Moçambique ou a de Angola que tem mesmo uma AK-47, não é? Há outros países que têm mesmo uma metralhadora na sua bandeira. 

Angola tem uma palanca, Moçambique… não estou a ver.
É, eu acho que tem um martelo e uma metralhadora. Bem, pronto! Não é que eu queira dizer mal de Moçambique – talvez o sítio mais maravilhoso em que eu estive, na Terra, foi precisamente ali na costa moçambicana e na Ilha de Bazaruto, que é fantástica. Bazaruto fica em Moçambique, quase em frente à Beira, mas é um arquipélago muito pequenino, duas, três ilhas. É um sítio maravilhoso. E, depois, referi há bocado o Nepal, onde estive há três anos. Estive lá quase dois meses, decidi fazer o meu último [álbum] a solo, as 20.000 Éguas Submarinas, com gongos, com instrumentos tibetanos e com ambientes desses. E achei muito curioso que o nosso guia, às vezes, apontava para o chão e havia de facto plantas de marijuana, indiana, que nascia espontaneamente ao longo dos trilhos, e é uma planta muito bonita, muito fresca. Tenho uma simpatia especial pelas plantações e acho um crime quando vejo as plantações incendiadas; remete-me muito para queimar livros, para queimar pseudo-bruxas. Quando nós queimamos… eu também faço, tenho o meu patiozinho, um bocado mais estendido, faço a minha queimada também, mas são objectos mortos e imprestáveis, não é? Um pouco como os Parsis, que queimam os corpos, também. Os Parsis não, os Parsis, pelo contrário, expõem-nos…

O mais recente álbum de Rui Reininho, “20.000 Éguas Submarinas”, foi gravado durante um retiro de dois meses no Nepal. Foto: Joana Linda

Expõem-nos aos abutres…
Fazem isso e os budistas também. Queimar o corpo é quando a matéria em si já não tem outra utilização e está imprestável e a pessoa não quer servir de adubo. Mas, portanto, do ponto de vista poético, militar, policial, estatal, sou absolutamente contra a proibição e não vejo nenhum mal na legalização. Mas se o Estado ganha dinheiro com o tabaquinho, que me parece que está mais que confirmado que cada cigarro tem cerca de quatrocentos componentes viciantes e alguns cancerígenos, sobre a marijuana, acho que não haverá tanta informação. Agora, se me perguntares se eu fumo ou não, também não tenho problema nenhum. Olha, até tenho aqui um objecto que me foi oferecido na linda ilha de São Miguel, um cabeço muito interessante [mostra uma flor de canábis]. Se fizerem uma rusga cá em casa, lá está, estou aqui a mostrar a prova do horrível crime nesta caixinha maravilhosa! Foi uma prenda, um token de um amigo; foi despedir-se de mim ao aeroporto e trouxe-me esta caixinha.

Acho que, só por isso, não vais ter problemas.
Eu, pessoalmente, não fumo, de todo, mas é por questões de garganta. Mas há outras utilizações; há chás, bolos, o que seja.

Já experimentaste vaporizar?
Sim, sim. Já me sugeriram, até por questões de apetite. Os meus apetites, às vezes desaparecem – alguns! Outros mantêm-se! Mas enrolar nunca tive jeito, mesmo desde a adolescência. Às vezes os meus amigos pediam-me e tal, “Enrola aí!” Eu chamava os meus de los amarrotados (risos). Lembro-me daquelas maquininhas, lá está, na Holanda, vulgaríssimo. Até porque as pessoas, mesmo o próprio tabaco, tinham muito o tabaco de enrolar. É um hábito. E acho que até é mais convivial a pessoa fabricar o seu cigarro do que abrir o maço, não é? É mais convivial, e pronto, também aquele facto de se passar, que é uma expressão já muito antiga, está numa música até, no Woodstock, Pass the dutchie, que é uma espécie de reggae, enfim!

Falaste nos edibles, ou comestíveis. Também utilizaste essa via para consumir canábis?
Eu também passei umas temporadas, nomeadamente em Marrocos, onde havia muito o hábito dos bolinhos de haxe, não é? O óleo de haxe também experimentei e achei um pouco pesado para a minha cabeça, mais próximo do ópio, talvez, mas os bolinhos… é interessante que a própria digestão, de facto, tem um efeito à la longue, não é imediato, mas ao fim, talvez, de meia hora, a pessoa começa a sentir-se… eu sentia-me mais solto e, como gosto de rir… pelo menos é um tipo de produto que me faz sorrir, não sei se rir às gargalhadas mas, pelo menos, sorrir.

Rui Reininho com os GNR, já nos anos 2000. Foto: D.R.

Ficar mais bem disposto, talvez.
Sim, embora as circunstâncias… tenho a impressão de que uma pessoa, se se habituar, passa por um estado em que as drogas lisérgicas teriam um bocadito, que é… “Quem tem medo de Virginia Woolf?”, o medo de si, o medo do reencontro, e assisti a muita gente que entrava em pânico, pura e simplesmente, não está tudo dentro do controlo; lembro-me de estar com uns amigos numa peça de teatro, ali no Teatro da Trindade, em Lisboa, e, de repente, uma rapariga, pura e simplesmente teve uma pulsão, deu ali umas passas e disse “Eu vou-me entregar à polícia, porque não me estou a sentir bem.” E nós dissemos: “Mas vais-te entregar à polícia porquê?”. “Não, não sei…!” Quer dizer, a morbidez está dentro de nós, nada que se espolete… eu sei lá, eu nunca pensei entregar-me à polícia em circunstância nenhuma! Agora, tenho cometido alguns pecados como se fosse excesso de velocidade, talvez até conduzir acima de 0,5, já me aconteceu, eventualmente.

Voltando um bocadinho atrás, na tua juventude, lembras-te quando é que foi a primeira vez que tiveste contacto com canábis?
Pois terá sido nas primeiras viagens que fiz, nomeadamente na Holanda, sim, que era muito à vontade. A sociedade é muito… eu não gosto de lhe chamar liberal, porque depois associamos agora a um novo liberalismo que não me parece que seja… mas era uma sociedade, isso sim, muito permissiva.

Que idade tinhas?
Bastante cedo, 16, 17 anos…. Comecei a sair… e depois, em viagens, era… cá ainda havia uma certa repressão e mesmo um certo medo, digamos,  desta sociedade muito autoritária. E que penalizava. Tive amigos que foram realmente punidos por serem apanhados com quantidades ínfimas de canábis e seus derivados.

E como é que foi depois, ao longo da tua vida, a relação com a canábis? Foi uma coisa que tu gostasses de usar ou não?
Não, não era das minhas preferências, era essencialmente recreativo e era mais uma questão de convívio, de estar ali com as pessoas. Nunca fui uma pessoa que… conheço muitas que contam: “a primeira coisa que eu faço é tomar um cafezinho, fumar um charrinho logo de manhã” e tal…

É o que se chama “wake and bake”! (risos)
A minha relação nunca… digamos, guardei para mim. Em relação a outros produtos assim mais recreativos, sempre fiz um pouco em relação social e agora, coitado, com o meu destino, só me permito, às vezes, um vinho tinto. Raramente o faço em solidão

Quando eras mais jovem, sentiste a necessidade de te alienar? Que substâncias é que gostavas de experimentar?
Eu acho que sempre tive uma certa antena para as pessoas eufóricas. Eu posso, por exemplo, e é uma coisa que tenho bastante presente, que no outro dia um amigo me contou, quando apareceu a fase do que a gente aqui no Norte chamava as pastilhas. As pessoas estavam a pastilhar, nesses ambientes e coisas do género, eu entrava facilmente em euforia com pessoas que estavam nesses estados… 

Os GNR no início dos anos 80. Foto: D.R.

Era por osmose?
Exactamente, havia ali uma osmose… Entrava e eles vinham perguntar “O que é que tu tomaste?” – e eu dizia “Não tomei nada!”, mas realmente entrava assim num grupo que estava tudo trum trum e eu também. Até porque eu gostava bastante, embora seja um bocado desajeitado, de me exprimir com o corpo e a dança. Eu, fumar, nunca fumei muito. Fumei cigarros durante vinte anos. Não é assim, acho, que muito; comecei muito tarde, lá para os vinte, vinte e um. Não sei, quando comecei a trabalhar mesmo. São dois vícios horríveis, o trabalho e o tabaco (risos) e nunca fumei assim muito; sempre a partir da tarde e às vezes quando, lá está, saía assim um bocado à noite, muitas vezes nem saía com cigarros… ou cravava, ou então ia comprar mesmo naquela altura, nos sítios. Mas nunca fumei assim muito e depois, como era muita encrenca, se fosse a canábis, ou levava preparadinho, ou então não tinha paciência para ir fazer ou estar ali à espera de enrolar…

E onde é que tu arranjavas a tua canábis?
Pertencia ali a um grupo, nomeadamente nesta cidade e noutras, em que as pessoas normalmente tinham; umas começaram a plantá-la, mas era um bocado de má qualidade. Nos primeiros anos 70 vinha muito das ex-colónias, os sacos de erva, como a gente chamava. Era uma ervita muito boa, em sacos de plástico. Lembro-me de ir também comprar, assim com amigos e tal; e era perigoso, era clandestino, embora as pessoas não se apercebessem. Eu creio que, nos anos 70, as pessoas não se apercebiam muito bem que as pessoas estavam, digamos, sob o efeito da canábis, mas também não é uma coisa muito exagerada, talvez, rir-se um bocado. Lembro-me, realmente, de espoletar bastante o apetite e apetecer comer, de facto, aí depois da meia-noite, mas era um ponto de vista interessante. Depois lembro-me de ser um componente muito especial para o chamado down das trips lisérgicas, isto já para comunicar ao outro. Lembro-me de fazermos sessões, mas o meu grupo era muito organizado. Nós fazíamos ali as sessões previstas, escolhíamos a música antecipadamente, para não ter assim downs, não é? Para fazer aquelas viagens.

Com LSD?
Sim, sim, e depois ali a saída normalmente tinha a ver com o que a gente chamava uma ervazita, um haxe, para relaxar um pouco, porque uma das coisas que eu descobri é que ao abrir essas portas, por vezes, a gente encontra o que não quer, mesmo dentro de nós. Tinha amigos e conhecidos e pessoas que nem conhecia muito bem e, normalmente, evitava… não gostava muito de estar ali a… Acho que é uma relação… a pessoa está muito disponível mentalmente e, mesmo no chamado Pass the dutchie, passar ali os charros… coisa que aprendi com os brothers amigos, eu creio que ele nem fica nada ofendido se citar… que é um meu amigo do Kussondulola. (risos)

Que está na vibe, não é? Na onda…
E estar ali com os amigos blackies e tal, no estúdio, e o nosso mestre não passar, e ele ensinou-me “Não, não, isto não é para passar!” Ele fazia aqueles charros enormes, não é? “Não é para passar” e tal, “isso é para uma pessoa fumar por si!” Aprendi ali uns dois ou três rituais, mas aí é muito interessante estar num estúdio em que há ali uma névoa, em que só há ali canábis no ar e a música fica necessariamente diferente; de facto, é ouvida noutras condições; isso é pura investigação científica e… ficção científica! (risos) 

O Manel Cruz diz, na entrevista que nos deu precisamente para esta rubrica, que fez uma das melhores músicas sob o efeito da canábis. Também alguma vez tiveste esses momentos de criatividade?
Acredito! Não me recordo, eu é mais estar a escutar. Eu gosto é de ouvir as músicas após a sua concepção e ouvi-las em várias circunstâncias. Sempre fiz um pouco isso, mesmo antes de se gravar definitivamente, eu ouvir em várias fases. Lá está, ao acordar é muito interessante, assim a seco e de jejum, para se ouvir o que se esteve a gravar durante a noite, e chegávamos à conclusão que uma grande percentagem ia para o lixo, porque aquela primeira leitura de manhã é muito mais crua, não é? 

O Manel também disse isso… que, muitas vezes, no dia anterior achava que estava espectacular e no dia a seguir estava uma porcaria.
Uma desilusão para os próprios, ainda bem. Sei que o Manel tem esse critério; de facto, nem tudo o que se grava na chamada jam session é de aproveitar, mas estava a dizer que eu gosto de ouvir em várias circunstâncias. Na altura, ouvíamos em cassete, depois comecei a ouvir em CD, metia durante as viagens, ouvia a música no carro. Ouvir a música no banho também é bom e escutá-la em mono e, se possível, depois, simular as condições do rádio, aqueles rádios de pilhas, em mono… ver se ela resiste, digamos, a todas as expressões. Faço isto há… portanto, em 77… vão ser quase cinquenta anos de actividade. Já fiz e colaborei com a música de várias maneiras, e sim, é interessante, também uma experiência científica. O Sherlock Holmes também o fazia; por exemplo, a própria cocaína, antes de ser perseguida, digamos assim, pelas circunstâncias… antes, os estados nunca conseguiram lucrar directamente com esses produtos. Era sempre essencial. Eu tinha, num antigo manual, histórias muito interessantes, em que a própria canábis era receitada já há uns tempos; o próprio Freud tem escritos… Sigmund Freud e aquela linha psiquiátrica, utilizava ali em sessões e a análise é muito diferente, precisamente para alterar o estado, para uma pessoa ter outro ponto de vista. Claro que, não é, mandar ali um risco, um cheirinho, é muito importante, muitas vezes, para abrir a cabeça e para uma pessoa encontrar defeitos e virtudes nas coisas. Tem é que ser muito rápido, porque o efeito, realmente, é passageiro. Nunca utilizei muito em espectáculos, por exemplo; não sei se era a pergunta que viria a seguir… porque a adrenalina do espectáculo, para mim, no meu caso, não é nada coincidente. Claro que experimentei, meia dúzia de vezes, não vou dizer setenta. Mas, por exemplo, esses produtos assim mais rubicundos, se o efeito passa a meio de uma performance, a pessoa sente falta de qualquer coisa, sente insegurança, seca um pouco os lábios e tal… agora, conheço muita gente que também gosta de utilizar canábis antes dos espectáculos e lhes dá… não sei, são vidas, já assisti a tanta coisa… então o pessoal do reggae precisa mesmo, não é? Aquele “bobanço”, mas também ficam ali duas e três horas, se for preciso, não é? Tchaka… tchaka… tchaka… tchaka… (risos) Roots reggae. Eu gosto muito de reggae… fantástico, como o ska, como muitos outros.

A tua utilização, foi sempre, então, mais para o lado recreativo.
A canábis, para mim é… sempre considerei como um passatempo. Tem essa sua utilização, que é adoptada por muita gente, mesmo em termos de dor, não é? Há pessoas em estados físicos que dizem que realmente ficam muito aliviadas… e, muito especialmente, para tirar a ansiedade. E eu tentei aproximar-me até mais nesta feira anual que costuma haver aqui; eu acho que ela já é anual, não é? A Cannadouro. 

Sim, vai ser este fim de semana.
Pois, eu estou na Póvoa a tocar. Eu já lá fui, ali à Alfândega, e o ambiente é muito interessante mesmo, muito simpático. 

Na Cannadouro há muitas coisas relacionadas com o cânhamo, que também é algo que tu já descobriste…
É verdade, parece-me que um aproveitamento substancial do cânhamo poderia evitar, segundo ouvi dizer, lá está… é uma boa planta, que acho que permite, com a sua utilização, poupar muita água em termos “vestimentários” e de produtos associados – calçado, as maletas, os tais sacos que eu já mostrei, um saco de ginásio que se chama Sativa (de cannabis sativa).

Mas sabes que, cá em Portugal, já há muita gente a querer cultivar cânhamo, mas há muitos entraves, com apreensões…
Eu acho esquisitíssimo andarem os meus colegas da GNR a meter o nariz nas propriedades das pessoas a ver o que é que esta planta faz e o que a outra faz, não é? É um bocadinho caça às bruxas, ainda, ver o que é que as pessoas têm…

Principalmente numa altura em que Portugal é um dos maiores produtores de canábis medicinal do mundo. Mas se tiveres uma ou duas plantas em casa, arriscas ir preso, porque não podes cultivar. Então, onde é que as pessoas vão buscar?Exactamente, são aqueles contra-sensos jurídicos de… a pessoa, para o ter, tem que plantar, não é?

Mas, neste caso, a pessoa tem que recorrer ao tráfico, mas por outro lado tens empresas que cultivam só para exportação.
Os Estados Unidos, que era dos estados mais conservadores, agora descobriram que é um filão… mas isso é um dos sintomas do capitalismo selvagem, porque quando descobrem que a coisa dá dinheiro, tornam-na legal.

Imagem retirada do documentário “A Viagem do Rei”, que conta a vida de Rui Reininho. Foto: Afonso Sereno

Claro. E isso já chegou aqui também à Europa. Mas estamos sempre a adiar a legalização e a deixar as pessoas a ter que recorrer ao mundo do crime. Como é que tu vês esta situação?
É ridículo e é uma situação muito interesseira. À partida, quer dizer, do ponto de vista social, creio que ninguém tem a ver com o que os outros plantam ali no terreno ao lado, nos campos… Eu conheço dois ou três sítios, mas não vou denunciá-los, não é? Por exemplo, nos Açores, fui visitar uma iniciativa de quatro ou cinco pessoas que têm a sua… a canábis açoriana pareceu-me bastante boa e, de facto, é tudo tão espontâneo, uma planta tão espontânea… será um arbusto, um bush, e acho sempre interessante quando, digamos, as autoridades se concentram a perder tempo com minudências, não é? As autoridades são para proteger e servir e não para estar a incomodar as pessoas no seu ambiente, no seu repouso.

E pior, ainda confundem muito o cânhamo industrial com a canábis. Então, os teus colegas da GNR também destroem plantações inteiras de cânhamo.
É o chamado grupo sem álcool, não é, do cânhamo… Sem o princípio activo, não é?  

Sim, sem o THC. Só que como a planta é igual a GNR ainda confunde e destrói plantações inteiras, hectares e hectares!
Não é toda a GNR. Nós não estragamos nada, no nosso caso! (risos)

Isso é verdade! (risos) A GNR, sim, os GNR, não! E ainda bem!
Espero que nos encontremos nesta vida!

Eu também!
E até breve!

Tu costumas fazer meditação?
Sim, tenho aqui os meus gongos em casa… até vou pô-lo a soar para nos despedirmos! Tenho mais dois ou três pequeninos; normalmente, nas minhas manhãs, faço aqui uma respiração. Uma das coisas mais agradáveis é ser acordado, até para o pequeno almoço, com um gongo… pim pim pim… aqui em casa trouxe um pouco dos ambientes que frequento. Ele ainda está a soar, não sei se se ouve… uuuuuhhhhh

Ouve-se a vibração, sim, muito bom!
Dei-lhe um bocadinho forte, peço desculpa! (risos) Peço desculpa ao gongo, também, que eu normalmente dou-lhe com mais subtileza! (risos)
__________________________________________________________________________________
Esta entrevista foi originalmente publicada na edição #12 da CannaDouro Magazine, em Dezembro de 2023.

 

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[Aviso: Por favor, tenha em atenção que este texto foi originalmente escrito em Português e é traduzido para inglês e outros idiomas através de um tradutor automático. Algumas palavras podem diferir do original e podem verificar-se gralhas ou erros noutras línguas.]

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Licenciada em Jornalismo pela Universidade de Coimbra, Laura Ramos tem uma pós-graduação em Fotografia e é Jornalista desde 1998. Foi correspondente do Jornal de Notícias em Roma, Itália, e Assessora de Imprensa no Gabinete da Ministra da Educação. Tem uma certificação internacional em Permacultura (PDC) e criou o arquivo fotográfico de street-art “O que diz Lisboa?” @saywhatlisbon. Laura é actualmente Editora do CannaReporter e da CannaZine, além de fundadora e directora de programa da PTMC - Portugal Medical Cannabis. Realizou o documentário “Pacientes” e integrou o steering group da primeira Pós-Graduação em GxP’s para Canábis Medicinal em Portugal, em parceria com o Laboratório Militar e a Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa.

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