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ICRS Salamanca – Dos avanços na investigação à biologia quântica… Começou a era da medicina pós-canabinoide?
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No início do mês de Julho, Salamanca recebeu a 34ª edição do Simpósio anual da International Cannabinoid Research Society (ICRS.com). Este encontro dedicado às ultimas descobertas científicas em todas as áreas dos canabinóides e da canábis medicinal, reuniu alguns dos investigadores, médicos, farmacêuticos, cientistas e estudiosos mais reconhecidos e inovadores do mundo na área da “Cannabis Medicine”.
Durante 5 dias, mais de 50 oradores e centenas de investigadores apresentaram os resultados de alguns dos mais recentes estudos, pesquisas e ensaios na área da canábis, dos canabinóides e para além desses temas. Foram expostos os resultados de investigações em todas as suas fases (análises, estudos e ensaios pré-clínicos e clínicos Fase I; Fase II e Fase III double-blind, placebo-controlled) dedicadas a entender os mecanismos de ação dos diferentes compostos químicos da planta da canábis no nosso organismo através do Sistema Endocanabinoide, as diferenças deste sistema entre homens e mulheres, a importância da recolha e interpretação dos dados e, entre muitas outras coisas, o papel fundamental que alguns organelos das células têm para a nossa saúde.
Primeiro dia dedicado à Pediatria
O primeiro dia foi especificamente desenvolvido para o ICRS Pediatric Special Interest Group, organizado pelo C4T (Canadian Collaborative for Childhood Cannabinoid Therapeutics), no qual foram apresentados diversos estudos realizados no âmbito da pediatria. Destaque para a plataforma que a Health Canada (autoridade do medicamento do país) desenvolveu para recolher e analisar os efeitos do uso de canabinoides, reportados por utilizadores, familiares e a comunidade médica. Durante esta sessão foi realizado um workshop cujo objetivo foi entender qual as melhores formas de recolher dados sobre cada possível episódio relacionado com o consumo de canabinóides.
Ao longo da manhã, Ethan Russo, Neurologista (M.D), investigador na área da Psicofarmacologia dos Canabinóides e co-autor de dezenas de estudos, expôs uma interessante investigação retrospetiva com uma previsão dos caminhos possíveis nos tratamentos pediátricos com canabinóides, na apresentação “História da Canábis Medicinal em Crianças e Direções Futuras”. Russo lembrou os usos dos canabinóides como medicina ao longo dos séculos e apontou para alguns estudos já realizados, como um feito com mulheres Jamaicanas para entender os efeitos do uso de canábis durante a gravidez nos neonatos. Referiu ainda outro do Professor Mechoulam e A. Aramov que apontava para a eficácia do Delta-8-THC como antiemético (redução dos vómitos) em casos de cancro infantil.
Ethan Russo relembrou os usos ancestrais da planta da canábis e fez um apanhado de alguns estudos científicos com canabinóides relevantes na área da oncologia pediátrica.
Ainda durante a CT4 – Pediatrics Conference, Dedi Meiri ( Ph.D.), Professor Associado no Technion (Instituto de Tecnologia de Israel) – Laboratory of Cancer Biology in Cannabinoid Research, fundador da CannaSoul Analytics apresentou a palestra “A Complexidade da Planta da Canábis: Lições para os Pacientes de Canábis Medicinal”.
Mestrado em Bioquímica e com um Doutoramento em Tecnologia de Plantas pela Universidade de Tel Avive, Dedi Meiri é uma das figuras mais reconhecidas na investigação com canábis, em particular pelo seu Database Project, através do qual já recolheu, sistematizou e analisou os dados de milhares de pacientes tratados com canábis medicinal em Israel. Durante a sua apresentação, lembrou o trabalho feito com canabinoides ao lado do Professor Raphael Mechoulam – nomeadamente, uma base de dados e uma livraria na qual chegaram a catalogar 120 moléculas diferentes – e falou da evolução do uso de canábis medicinal em Israel, onde atualmente cerca de 155 mil doentes já recorrem a esta planta para tratar os seus problemas de saúde. “Na database que criámos, registamos os canabinóides e terpenos de cada strain (cepa) usada nos hospitais em Israel em pacientes de epilepsia, cancro e diversas doenças. É um excelente exemplo de como gastar 5 milhões de dólares sem obter quaisquer resultados”, brincou. Desde o início, ficou claro para os dois investigadores que “a canábis funciona na epilepsia infantil porque é realmente a molécula ativa que reduz as convulsões. Na epilepsia, ao menos sabe-se isto”, concluiu.
Em 2015, quando desenvolveram outra base de dados para recolher informação sobre o tratamento em crianças autistas, “também observámos que, com um extrato alto em CBD e baixo em THC, tanto a ansiedade como os picos de agressividade melhoraram bastante”. O governo do país quis que avançassem para um ensaio clínico, o qual acabou por ser feito com 56 crianças e um grupo placebo. “As melhorias foram enormes na redução da agressividade comportamental e na melhoria do contacto visual”, explicou.
Meiri também falou da catalogação dos resultados recolhidos sobre o uso de canábis para a insónia. Dividiram as strains em tipos e perceberam que o Tipo 1 era o mais eficaz, portanto, as moléculas que afetam o sono estavam nesse grupo, sendo uma delas o CBN. Mas após dois estudos falhados, perceberam que não parecia ser esta a única razão. Fizeram um novo estudo em ratos usando a cepa que dava melhores resultados e a conclusão foi muito positiva. “Mas aquela strain tinha 19 fitocanabinoides, flavonoides, pigmentos… Retiramos o CBD e o CBN; pusemos sintéticos e não funcionou; isolámos e juntámos os compostos, mas os efeitos não eram os mesmos”, contou. A conclusão é que teria de haver mais qualquer coisa. Criaram um produto misto “não-psicoativo, mas sem os efeitos secundários observados” (uma dose alta de THC é melhor para dormir do que uma baixa, mas tem mais efeitos adversos).
Dedi Meiri apresentou a palestra “The Complexity of Cannabis Plant; Lessons for Medical Cannabis Patients”.
Fizeram um ensaio clínico com 128 participantes: revelou melhorias significativas depois de 1 semana e de 1 mês. “57 pacientes usavam remédios para dormir e passado um mês de usar canábis, apenas 13 continuavam a usá-los”, revelou. Mais tarde, usaram esse óleo noutro estudo com 3.800 participantes que sofriam de dor crónica. “A redução da dor foi mínima, mas no sono teve um major effect. E embora tivesse efeitos adversos, como náuseas, sonolência e enxaquecas em alguns casos, “não observámos efeitos adversos severos – sendo que o Rock Oil, com uma dose muito alta de THC (110) foi o que manifestou os piores efeitos”, concluiu.
Estudos, ensaios, artigos e dados, dados, dados!
Os quatro dias de ICRS que se seguiram foram preenchidos por exposições orais de investigações realizadas ou em curso por todo o mundo – uma média de 16 apresentações e dois oradores convidados por dia –, seguidas de uma sessão intensa de Datablitz (3 minutos para alguns investigadores seleccionados exporem os dados recolhidos sobre a sua investigação). Depois destas sessões no auditório, cada dia terminava com as Poster Sessions, em que os cientistas responsáveis por diversas investigações (muitos deles, estudantes de pré e pós-Doutoramento que atualmente estão a fazer as suas práticas em laboratório com professores-cientistas) apresentavam os resultados do seu estudo num poster infografado. Esta prática, comum em convenções científicas, permite ler rapidamente o tema, o objetivo, a metodologia, as estatísticas da amostra e as conclusões retiradas e falar diretamente com os investigadores.
Tendo em conta a diversidade e o volume do trabalho apresentado ao longo do evento, ficou de manifesto o interesse da comunidade científica pelos canabinóides e pelo funcionamento do Sistema Endocanabinóide, e revelou os enormes avanços científicos que tem havido nesta área.
Dos cinco dias intensos de conferências e apresentações, retirámos 3 palavras-chave:
- Mitocôndrias
- Biologia Quântica
- Moduladores alostéricos
Do estudo da química e da energia
O papel preponderante das mitocôndrias foi uma das coisas que mais chamou a atenção entre as diversas palestras. A importância destas fábricas de energia das células foi ressaltada em diversas apresentações, sobretudo na de Geoffrey W. Guy, co-fundador da GW Pharmaceuticals, empresa que desenvolveu o Sativex e o Epidyolex – os dois primeiros medicamentos à base de canábis com API a serem fornecidos aos hospitais, primeiro em Inglaterra e, depois, pouco a pouco, por todo o mundo onde a canábis medicinal é legal. Guy acabou por vender a GW Pharma, “líder mundial em terapêuticas canabinóides”, à Jazz Pharmaceuticals por 7,2 mil milhões de dólares em 2001. Entre os inúmeros prémios que já recebeu ao longo da vida, está o Lifetime Achievement Award da International Cannabinoid Research Society (ICRS) em 2023.
Em 2018, co-fundou a Guy Foundation Family Trust, com a sua mulher, Kate. A partir desta fundação, continuam a investigação em novas áreas da medicina pós-canábica – isto é, para além da ação dos canabinóides e terpenos. Guy ousou dar um passo em frente, pondo o foco na “biologia quântica”, a área da medicina que estuda “o efeito da mecânica quântica nos sistemas biológicos”, segundo a apresentação que fez em Salamanca. Ou seja, estuda o comportamento das “peças” mais pequenas do organismo, desde as respostas elétricas que as reações químicas produzem e vice-versa, investigando fenómenos como o spin, o tunneling e o entanglement ou entrelaçamento, que tanto fascinam os estudiosos da física quântica (e da metafísica), passando ainda pela superradiação, a vibrónica e a pulsação quântica.
Geoffrey W. Guy durante a sua exposição “Medicina Canabinóide: Passado, Presente e Futuro” no ICRS 2024.
As mitocôndrias jogam aqui um papel importante, precisamente por serem os organelos celulares responsáveis pela produção de energia (química) e o transporte da mesma através das moléculas ATP (Adenosina Trifosfato), pela comunicação intercelular e pela respiração das células. Os distúrbios destes organelos devido à mutação do DNA mitocondrial (que apenas é herdado da mãe e é independente do da célula hospedeira) podem provocar doenças muito complicadas e levar à morte celular – ou seja, têm um papel fulcral no envelhecimento.
Já se sabe que canabinóides como o THC e o CBD podem afetar a função mitocondrial. Mas acontece que as mitocôndrias também são sensíveis à luz, um pormenor determinante, já que as partículas de luz poderão influenciar o comportamento das mesmas. A descoberta da comunicação e das relações entre as mitocôndrias – tanto dentro da mesma célula como com as de outras células – só está a ser estudada há cerca de 10 anos, mas promete mudar a medicina para sempre.
Geoffrey Guy deu o exemplo de dois trabalhos de investigação, um sobre a “Superradiação Ultravioleta das Mega-redes de Tryptophan na Arquitetura Biológica” (Ultraviolet Superradiance from Mega-Networks of Tryptophan in Biological Architectures) e outro sobre os efeitos da luz próxima do infravermelho e dos campos eletromagnéticos para o tratamento da inflamação pulmonar após um surto de Covid-19 (Therapeutic application of light and electromagnetic fields to reduce hyper-inflammation triggered by COVID-19). Estes dois estudos servem de base para o futuro da sua investigação sobre as possibilidades da Fotobiomodulação – área que tem vindo a estudar com o seu colega M. Powner.
Acontece que os protões, em certas radiações óticas não-ionizantes, dentro de um intervalo do espectro eletromagnético visível e quase-vermelho, podem interagir com os organelos ou moléculas cromóforas endógenas (sensíveis à luz), desencadeando certas reações químicas e/ou elétricas no nosso organismo, com potenciais benefícios terapêuticos. Estas ondas não têm energia suficiente para remover quaisquer eletrões do átomo, pelo que não alteram o DNA.
Mas o que é que tudo isto tem a ver com canábis? Guy lançou várias questões: “Será que os canabinóides podem modular os efeitos quânticos – por um lado, das cadeias de transporte de eletrões e, por outro, da síntese de ATP e dos microtúbulos e ainda a regulação metabólica disponibilizada pela superradição –, e a comunicação e controlo intra e intercelular?” Falamos, portanto, de “celular energetics”, disse ele, “neuroplasticidade, neurodesenvovimento das crianças, regeneração a meio da vida e envelhecimento”. Posto isto, apontou Guy, “será muito importante entender quais são as caraterísticas quânticas dos canabinóides que se estão a introduzir [no organismo]: onde estão os eletrões? Que órbitas seguem? Estes perfis energéticos podem ser mais importantes do que a sua estrutura química”, afirmou, deixando o desafio no ar. E terminou, mostrando a ultrafluorescência de um canabinóide sintético.
Quem quiser saber mais sobre este assunto pode ler o artigo: Informing the Cannabis Conjecture: From Life’s Beginnings to Mitochondria, Membranes and the Electrome—A Review, publicado no International Journal of Molecular Sciences em agosto de 2023 por Alistair V. W. Nunn e co-autorado por Guy e Jimmy D. Bell, outro colega de ambos da Universidade de Westminster, em Londres.
Modular o Sistema Endocanabinóide para potenciar os benefícios dos fármacos
Outro caminho relevante para a investigação com canabinóides é o dos moduladores alostéricos. Estas são substâncias que se ligam aos recetores num sítio diferente do local ao qual se conetam habitualmente, por oposição aos ligandos ortostéricos, que se conectam no local “certo” do recetor – sendo que o sítio ortostérico é o lugar onde habitualmente se ligam. Isto tem vindo a ser estudado em medicina e farmacologia desde os anos 60, mas no caso da sua ação no Sistema Endocanabinóide e do potencial que revelam, a procissão ainda vai no adro…
Os moduladores alostéricos, explicados de uma forma muito simplificada, provocam uma modificação do sítio do recetor, modulando assim a sua afinidade com o ligando ou até a própria atividade do recetor. Quando são “positivos”, estes moduladores aumentam a afinidade entre os ligando e os recetores; e quando são “negativos”, diminuem-na. Isto significa que, numa situação de desequilíbrio (patologia), a atividade do recetor pode ser revertida para um nível mais normal – não muito alto nem muito baixo – evitando assim desequilíbrios e, possivelmente, doenças.
Para perceber um pouco melhor este assunto, porém, convêm ter claro o que são os “ligandos”, assim como os conceitos de “agonista” e de “antagonista”. Por exemplo, os canabinóides endógenos (Anandamida e 2-AG, produzidos pelo organismo), assim como os fitocanabinóides (THC, CBD, CBG, etc., produzidos pela planta da canábis), são os ligandos que se unem aos recetores canabinóides (CB1, CB2, TRPs, etc.).
No entanto, os fitocanabinóides podem agir como “agonistas”, moléculas que se unem a um determinado recetor, com um determinado efeito; ou como “antagonistas”, quando se unem ao recetor impedindo a ligação dos agonistas endógenos – e bloqueando a atividade do recetor. A ação dos fitocanabinóides pode ainda ser parcial, quando o estimula o recetor menos do que o mesmo agonista endógeno; ou completa, quando estimula o recetor da mesma forma. O CBD por exemplo, pode comportar-se como um antagonista do recetor CB1, daí a sua capacidade para neutralizar os efeitos psicotrópicos do THC, canabinóide que se liga sobretudo àqueles recetores, encontrados predominantemente no cérebro e no sistema nervoso.
Portanto, os moduladores alostéricos entram nesta equação porque não se conetam no sítio ortostérico do recetor canabinóide, mas antes noutro sítio da proteína superficial, modulando a ligação entre o canabinóide e o recetor e, portanto, a sinalização do recetor. Um dos estudos pré-clínicos da Universidade de Toronto, apresentado no ICRS, versa sobre o uso de moduladores alostéricos para evitar a inibição do recetor CB1 em caso de hiperdopaminergia in vitro vs. in vivo. A hiperdopaminergia é uma condição associada a algumas psicoses como a esquizofrenia e tem a ver com uma descompensação do sistema dopaminérgico (alteração da modulação da atividade da dopamina).
“Se a inibição do recetor CB1 pode ter utilidade terapêutica, o bloqueio do sítio ortostérico neste recetor manifesta-se em efeitos psiquiátricos negativos; os moduladores alostéricos podem restabelecer uma sinalização temporal e especial normal do recetor CB1”, lia-se no poster do ensaio.
Segundo nos explicou a investigadora responsável por este estudo, Kim Sugamori, “quando temos uma conetividade muito alta de sinalização endocanabinóide, podem desencadear-se psicoses, obesidade ou fígado gordo, entre outras coisas, portanto queremos trazer essa conetividade a um nível normal. Não se pode ir muito abaixo, nem muito acima: se estiver muito abaixo, por exemplo, temos um aumento da ansiedade, da ideação de suicídio e da depressão.” Ou seja, calibrando a atividade do sistema endocanabinóide e a forma como recebe os canabinóides da planta através de moduladores alostéricos, é possível “ajudar” o organismo a atingir a homeostase (equilíbrio) e a evitar ou combater algumas doenças”.
Outro potencial dos moduladores alostéricos, segundo Sugamori, “é que se pode ser mais específico com o alvo, já que muitos dos agonistas e antagonistas ortostéricos acabam por ter afinidade com o sítio ortostérico de outros recetores, provocando efeitos fora do alvo – daí que as drogas [medicamentos] tenham tantos efeitos secundários diferentes, porque embora os recetores sejam específicos e seletivos, quando há uma concentração muito alta de uma droga, pode ligar-se a outros sítios”. Portanto, a vantagem de “desenhar” moduladores alostéricos, é “aumentar a seletividade [dos recetores] e reduzir os efeitos off-target [dos ligandos]”, explica. Apesar de a conclusão deste ensaio pré-clínico ter sido que não é possível transpor os resultados obtidos in vitro para os modelos in vivo, estes parecem bastante promissores. Isto porque “é outro método de modular a atividade em alguns estados patológicos como a psicose e a obesidade, já que ao usar um anti-psicótico, estes normalmente ligam-se aos recetores de dopamina D2 e bloqueiam os antipsicóticos, portanto as pessoas ganham peso e deixam de os tomar”, conclui Sugamori. “A nossa molécula NAM foi desenvolvida para combater a obesidade e a doença do fígado gordo, portanto, pelo menos num modelo pré-clínico, funcionou como um antipsicótico, mas um que não leva a um aumento de peso nem a distúrbios metabólicos”, referiu.
Canábis vs. cancro: pode esta planta ser a resposta que tanto se espera?
Entre as palestras que tiveram lugar durante estes cinco dias de ICRS, cabe mencionar a exposição de Manuel Guzmán (Ph.D): “Atividade Anticancerígena dos Canabinóides: Passado, Presente e Futuro”. Doutorado em Ciências Biológicas e professor de Bioquímica e Biologia Molecular da Universidade Complutense de Madrid, tendo recebido o prémio Mechoulam do ICRS nesta edição de 2024, Guzmán fez um flashback do trabalho de investigação com canabinóides na área oncológica e neuro-oncológica, que tem desenvolvido naquela universidade espanhola nas últimas décadas.
Nos últimos anos, a canábis tem-se vindo a revelar um fármaco muito eficaz na atenuação dos efeitos adversos da quimioterapia (náuseas, vómitos, falta de apetite, etc.), assim como para a redução de alguns tumores e a prevenção da angiogênese (criação de novos vasos sanguíneos tumorais), nomeadamente no cancro da mama. Também já demonstrou resultados muito positivos para a prevenção das metástases em vários tipos de cancro. Isto tem-se verificado graças à ativação dos recetores canabinóides nas células cancerígenas.
No caso Glioblastoma Multiforme (GBM), um tipo de tumor cerebral muito agressivo e a especialidade de Guzmán, foram conduzidos ensaios pré-clínicos que indicaram os efeitos anti-tumorais da canábis. Posteriormente, foi feito um estudo de Fase 1, em 2006, com 9 pacientes com este tipo de tumor recorrente e que anteriormente não tinham respondido à terapêutica convencional. Através de um cateter, injetaram THC diretamente no tumor, o que levou à redução do mesmo em alguns pacientes. Em 2021 foram publicados os resultados de outro estudo feito em duas partes com pacientes de GBM, com uma taxa de sobrevivência após um ano de 83% para aqueles tratados com Sativex (nabiximols) e Temozolomida (medicamento comumente usado para tratar estes tumores cerebrais), e apenas 44% no grupo placebo. No entanto, para este tipo de cancro, os resultados ainda não foram os esperados. Para poder tirar conclusões válidas, são ainda necessários ensaios clínicos com um grupo de controlo nos quais se possam testar várias composições de canabinóides, aliados às diversas formas de terapia convencional.
Manuel Guzmán já participou em mais de 200 estudos, que podem ser vistos aqui.
Destacamos ainda a apresentação de Ruth Ross, (Ph.D.), Professora do Departamento de Farmacologia e Toxicologia e Diretora do Centre for Collaborative Drug Research da Universidade de Toronto, no Canadá, que falou sobre “A Farmacologia da Canábis: a forma do que está para vir”.
Palestra “Cannabinoid Pharmacology: The shape of things to come”, apresentada por Ruth Ross, do Departamento de Farmacologia e Toxicologia e Diretora do Centre for Collaborative Drug Research da Universidade de Toronto, no Canadá.
Há mais de 20 anos a estudar a canábis e o Sistema Endocanabinóide, esta escocesa sediada no Canadá, com um sentido de humor muito requintado, relatou as suas falhas e conquistas ao longo dos anos, incentivando os jovens cientistas a não desistirem com as dificuldades para conseguir financiamento. A seguir, apresentou alguns dos estudos realizados por ela própria e pelos seus alunos sobre a dor, a ação dos endocanabinóides no fígado, os moduladores alostéricos, o papel da do canabinóide 2-AG na Doença Bipolar e os mecanismos de ação dos diferentes canabinóides no Sistema Endocanabinóide.
O seu trabalho é vasto, muito interessante e pode ser encontrado neste link.
A importância de encontrar a dose certa
Finalmente, lembramos a palestra “Canabinóides, Stress e Dor – Bloqueia ou não bloqueia?”, de Rajita Sinha (Ph.D), Professora de Psiquiatria, Neurociências e Psiquiatria Infantil, Diretora não-Executiva de Psiquiatria para a Psicologia do Yale Interdisciplinary Stress Center e Kang Tsou Memorial.
A redução da ansiedade, do stress e da dor são das razões mais apontadas pelos utilizadores para usar canabinóides. Mas até que ponto é que se pode justificar esta opção e quando é que estes consumos se tornam problemáticos ou mesmo ineficazes ou aditivos? Sinha apresentou os dados mais recentes (ainda não publicados) da sua investigação nesta área, mergulhando na “fenomenologia clínica do stress e da dor, na caraterização da resposta adaptativa ao stress e à dor e a modulação com canábis, e como lidar com o uso abusivo de canábis (em inglês Cannabis Use Disorder, ou CUD)” por parte destes consumidores. Segundo explicou, “70% dos seres humanos já passou por experiências traumáticas e 34% já teve 4 episódios traumáticos ou mais; 43% das pessoas inquiridas reportaram duas ou mais experiências na infância” (Sinha et al.) Tudo isto aumenta os níveis de cortisol produzidos pelo organismo, podendo desencadear casos de stress crónico. No entanto, “a uma resposta ao stress mais pronunciada, há uma maior tolerância à dor”, explicou.
Também “há enormes diferenças entre sexos”, avançou Sinha: “as mulheres apresentam valores muito mais altos de stress crónico do que os homens”. Para lidar com isto, frequentemente recorrem ao uso de ópio e canábis, embora o uso de canabinóides seja mais alto do que o de opióides e, de acordo com a Rajita Sinha, a tolerância aumente com o consumo, o que leva a um aumento na dosagem. “Os indivíduos com níveis mais altos de CUD são aqueles que estiveram mais expostos ao trauma e que têm co-dependências”, levando a uma resposta desregulada da produção de cortisol.
As diferenças entre os consumidores de álcool e de canabinóides também são notórias, sendo que o uso álcool tem consequências mais nefastas do que o de canabinóides, embora a resposta basal também mude, mas de forma diferente. Para entender quais as proporções ideais de canabinóides que estes doentes deverão usar sem evoluir para um consumo abusivo, optaram por uma abordagem experimental com combinações específicas de canabinóides. Com este estudo de duas fases e grupo placebo, perceberam que aqueles pacientes que receberam doses de 40/10 e 100/30 de CBD/THC responderam melhor do que o placebo. A dose de 40/20 de CBD/THC, por seu lado, aumentou a dor e a ansiedade. No geral, não identificaram efeitos adversos, nem moderados, nem severos.
Apresentação “Canabinóides, Stress e Dor – Bloqueia ou não bloqueia?”, de Rajita Sinha, no ICRS2024.
Na segunda fase do estudo, usaram as duas doses anteriormente identificadas como eficazes, durante sete dias e duas semanas de follow-up, de novo com um grupo de controlo com placebo. De acordo com Sinha, “o estudo teve algumas limitações, mas demonstrou que há efeitos positivos usando esta abordagem experimental e, surpreendentemente, no grupo 40/10, a qualidade do sono melhorou de forma dramática”.
ICRS 34ºAnual Symposium, muitos avanços e resultados promissores
A sensação que ficou, depois do overload de dados e estudos apresentados durante estes cinco dias de ICRS, foi a de que, ano após ano, a ciência está a fazer grandes avanços na área da medicina canabinóide, sobretudo na compreensão do funcionamento do Sistema Endocanabinóide e dos mecanismos de ação destas moléculas, tanto endógenas como exógenas, e muito para além disso.
Os resultados apresentados, no geral, são promissores e já existe há muita “data” que comprova que, para certas doenças ou em determinadas situações, o uso da planta é uma solução eficaz no tratamento único e/ou complementário. Mas ainda parece haver um mundo infinito para explorar.
Tanto a investigação exposta este ano como a comunidade científica atualmente a trabalhar com canabinóides, demonstram que a “cannabis medicine” é um caminho fascinante e que a ciência está já um passo à frente no estudo do potencial enorme que a canábis representa. Isto ficou manifesto nestes cinco dias de ICRS na bonita cidade espanhola de Salamanca.
Para o ano, o simpósio ICRS2025 será em Bloomington, no Indiana, EUA.
O investigador Thomas Arkell, da Swinburne University of Technology na Austrália; Natalya M. Kogan da Ariel University em Israel, e Shahid Perwaiz da Health Canada, ao lado dos posters que apresentaram os resultados dos seus mais recentes estudos.
Destacamos algumas das exposições, estudos e ensaios clínicos do Programa, que foram apresentados pelos autores durante o ICRS2024:
– “Real-Time Effects of Medical Cannabis on Older Adults with Chronic Pain: Early Results from a Prospective Cohort with Control”
Yan Wang*, Kimberly T. Sibille, Zhigang Li, Rene Przkora, Siegfried O. Schmidt, Margaret C. Lo, Ana M. Abrantes and Robert L. Cook
– “Inhibition of Fatty Acid Binding Protein 5 Prevents Stress-Induced Anxiety and Depressivelike Behavioural Symptoms and Reverses Stress-induced Inhibition Of Hippocampal Neurogenesis”
Taygun C. Uzuneser*, Matthew J. Jones, Mohammed H. Sarikahya, Dana Gummerson, Andrew Yates, Saoirse E. O’Sullivan, Daniel B. Hardy, Walter J. Rushlow and Steven R. Laviolette
– “Endocannabinoid Basis of Personality – Insights from Animal Model of Social Behavior”
Natalya M. Kogan*, Dilorom Begmatova, Sergey Malitsky, Maxim Itkin, Igor Koman, Eyal Sharon, Zvi Vogel, Raphael Mechoulam and Albert Pinhasov
– “A Randomized Placebo-Controlled Trial Assessing the Safety and Efficacy of Cannabidiol in Rheumatoid Arthritis Patients”
Veena K Ranganath*, Holly Wilhalme, Nicolette T Morris, Jenny Brook, Brian Skaggs, David A Elashoff and Ziva D. Cooper
– “The Endocannabinoid System in Bipolar Disorder and its Effects on Mitochondrial Function”
Pavel Powlowski*, Jaehyoung Choi, Lindsay Melhuish Beaupré, Joanna Biernacka, Ana C. Andreazza and Ruth Ross
– “Neurochemical and Behavioral Effects of Cannabinoids”
Rajeev I. Desai*, Evan C. Smith, Dalal AlKhelb, Christos Iliopoulos-Tsoutsouvas, Spyros Nikas and Alexandros Makriyannis
– “Delta-8-Tetrahydrocannabinol Prevents Collagen-Induced Arthritic Joint Degeneration and Pain-Depressed Behavior”
S. Olivia Vanegas*, Arsalan Zaki, Caroline Dealy and Steven G. Kinsey
– “Neurobiological Underpinnings of Cannabidiol’s Action in Attenuating Opioid Relapse”
Alexandra Chisholm*, Joseph Landry, James Callens, Randall J. Ellis, Jacqueline-Marie N. Ferland and Yasmin L. Hurd
– “Part I, Open Label Results Of The Safety And Efficacy Of Medicane’s Medical Cannabis Oil For Treatment Of Agitation And Disruptive Behaviors In Subjects With Dementia”
Neta Rimmerman*, Ramit Ravona-Springer, Ziv Sarussi, Noa Bregman, Talya Nathan, Vered Hermush, Nisim Mizrahi, Noa Stern, Talma Gotteiner, Adi Don, Hagay Moshe and Nurit Tweezer Zaks
– “Effects of Post-Injury CBD Administration in a New Model of Brain Damage of Inflammatory Origin in Rat Newborn”
Laura Silva Colmenar*, María Martínez Vega, Ángela Romero Sanz, María de Hoz Rivera, Nerea Huertos Soto and José Martínez Orgado
– “Assessing the Effects of Cannabichromene on Chemotherapy-Induced Neuropathic Pain”
Miguel A. De Leon*, Waseem Gul, Mahmoud ElSohly, Hannah M. Harris and Nicole M. Ashpole
– “The Effects of Short-Term Oral Cannabidiol (CBD) Ingestion on Inflammation, Muscle Damage and Functional Recovery Following Downhill Running”
Luke Downey*, Sarah Catchlove, Sam Wu, Mee Chee Chong and Matthew Cooke
– “Is What You See What You Get? Accuracy of Labeled THC Potency Across Flower and Concentrate Products in Colorado”
Greg Giordano, Colin Brook, Marco Ortiz Torres, Grace MacDonald, Jonathon Lisano, Carillon Skrzynski, Duncan Mackie and L. Cinnamon Bidwell*
– “Omega-3 Polyunsaturated Fatty Acids as a Therapeutic Intervention for the Psychiatric-Like Consequences of Chronic Adolescent THC Consumption”
Marieka V. DeVuono*, Eryn P. Lonnee, Marta De Felice and Steven R. Laviolette
– “Altered Endocannabinoid Signaling Might Contribute to Obesity in P62 KO Mice”
Christina Keller, Sebastian Rading, Bahar Candur, Gaby Loers, Laura Bindila and Meliha Karsak*
– “Cannabis has Remarkable Self-Reported Efficacy in People with Eating Disorders: Findings from The International Med-Fed Survey”
Sarah-Catherine Rodan*, Sarah Maguire, Noah Meez and Iain S. McGregor
– “Effects of Prescribed Medical Cannabis on Driving Performance & Cognitive Function”
Thomas Arkell*, Luke Downey and Amie Hayley
– “Phytocannabinoids in Combination: Chronic Pain”
Emmanuel Franco, Jose Rios, Laura Valdez, Andrew Tsin and Khalid Benamar*
Pode ver-se um resumo de todas estes estudos apresentados nas palestras apresentadas da edição deste ano no final do Programa do ICRS2024.
Para mais informação sobre a International Cannabinoid Research Society e as próximas edições do ICRS Symposium consulte o website da organização: www.icrs.com
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[Aviso: Por favor, tenha em atenção que este texto foi originalmente escrito em Português e é traduzido para inglês e outros idiomas através de um tradutor automático. Algumas palavras podem diferir do original e podem verificar-se gralhas ou erros noutras línguas.]____________________________________________________________________________________________________
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Cannabis Industry Council, Medical Cannabis Clinicians Society e Drug Science anunciam prémios da indústria da canábis
O jantar inaugural de entrega de prémios à indústria da canábis foi anunciado pelo Cannabis Industry Council, pela Medical Cannabis...