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Confusão entre cânhamo, canábis e óleo de sementes – problema, oportunidade ou publicidade enganosa?

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Cremes e máscaras faciais com CBD, séruns de ‘Hemp’ e suplementos alimentares com “Cannabis Sativa L.”. Cada vez mais marcas e cadeias de supermercados lançam produtos “de canábis” que, muitas vezes, apenas contêm na sua composição óleo de sementes de cânhamo ou sementes de cânhamo trituradas. Quando essas marcas e cadeias anunciam os produtos, falam dos benefícios da canábis medicinal, dando informações erróneas sobre as propriedades dos produtos que vendem e até  sobre os efeitos da planta. Será isto oportunismo, marketing ou desconhecimento de quem cria os conteúdos?

O problema não é novo, mas está longe de ter fim à vista. Há cinco anos, em Maio de 2019, o CannaReporter® publicou uma longa reportagem sobre a confusão que reinava em Portugal com a canábis medicinal, o CBD e o óleo de sementes de cânhamo. Uma confusão que perdura e se revela nas campanhas que algumas marcas lançam aproveitando a “moda” da canábis e nos conteúdos que se publicam nos mais diversos canais. Mas a desinformação ou as estratégias de marketing, além de confundir os consumidores, também podem violar o Código da Publicidade.

Este tipo de ações comerciais das grandes marcas, porém, tende a passar despercebido e sem qualquer implicação para os responsáveis, enquanto os proprietários das lojas de cânhamo vivem raides constantes das autoridades com avultadas apreensões de produtos e instauração de processos-crime. Quisemos perceber como é que as autoridades reagem quando aparecem estas campanhas e entender quais os métodos de controle e fiscalização destes produtos, tanto quando são vendidos pelas grandes marcas como quando são vendidos pelos pequenos comerciantes.

CBD não está regulamentado em Portugal

Um estudo da Universidade da Beira Interior publicado em junho, revelou “deficiências críticas” na rotulagem dos produtos de CBD vendidos em Portugal. Das 31 amostras de produtos que anunciavam conter canábis, encontraram-se “discrepâncias significativas na rotulagem” e na maior parte dos produtos analisados “as concentrações de canabinóides estavam abaixo do anunciado na etiqueta”, além de não conterem informação sobre a concentração dos mesmos.

Há uns meses, a Fundación Canna, organização espanhola dedicada ao estudo da canábis, publicava os resultados de um estudo dedicado a analisar a composição dos cremes de CBD de venda livre. Entre 2021 e 2023 analisaram 15 cremes que anunciavam e diziam conter CBD tanto em farmácias como em lojas especializadas. Fizeram análises cegas e concluiram que a maior parte dos produtos não especifica a percentagem de CDB (apenas 40% o faz) e das 6 que o declaravam, apenas 1 correspondia com os resultados obtidos. Concluiram ainda que a grande maioria contém quantidades pequenas ou residuais deste canabinóide. “Em 8 cremes, a concentração de CBD (mg de CBD/mg de creme) era extremamente baixa, com concentrações entre 0,00 e 0,73 mg de CBD/mg de creme (o que supõe um conteúdo de CBD menor que 0,073% em peso/peso nos 8 cremes). A concentração de CBD do resto (7 cremes de 15) encontra-se entre 0,17% e 1,11% peso/peso”, diz o relatório.

Em maio deste ano, uma loja de CBD recebeu uma visita da Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE), que apreendeu 845 unidades “de géneros alimentícios, designadamente, gins, bolachas, chupa-chupas, pastilhas-elásticas, gomas, chocolates e chás que apresentavam na sua composição uma substância não autorizada – canabidiol (CBD)”. O valor da apreensão ascendeu aos 1960 Euros. Ao proprietário foi instaurado um processo-crime “por género alimentício anormal falsificado e por adição de substância não autorizada”.

No final do mês de janeiro, outro pequeno comerciante proprietário de uma loja de CBD recebeu uma notificação da ASAE com uma coima relativa a uma “fiscalização aleatória” à sua loja online, devido às informações que tinha na descrição de várias infusões de ervas com cânhamo. Pelo facto de dizer que as plantas tinham certas propriedades benéficas para a saúde, como se vê em tantos e tantos sites, foi autuado com uma contraordenação que pode ir dos 1700 até 3 mil Euros.

Por essa mesma altura, a cadeia italiana de supermercados Aldi publicou dois folhetos em Portugal nos quais anunciava vários suplementos alimentares à base de cânhamo (Cannabis sativa L.) à venda nas suas lojas, acompanhados de informação sobre as propriedades medicinais da canábis, de alguns dos canabinóides mais usados e da importância do Sistema Endocanabinóide. Nos textos assinados pela nutricionista Mafalda Rodrigues de Almeida dizia-se que a canábis “tem vários constituintes, os mais conhecidos são o tetra-hidrocanabinol, também conhecido como THC (constituinte da marijuana com propriedades alucinogénias) e o Canabidiol (CBD), sem qualquer efeito alucinogénio”.

Embora haja estirpes de canábis cuja potência pode causar alucinações ligeiras quando consumida em doses altas, a planta é conhecida, estudada e utilizada pelas suas propriedades “psicotrópicas” ou “psicoativas” – ou seja, de alteração da psique ou dos estados mentais –, e não por causar visões ou alucinações. Este efeito deve-se à ação do THC nos recetores CB1 que temos no cérebro (parte do Sistema Endocanabinóide de muitos seres vivos) aos quais se ligam tanto os endocanabinóides que o nosso organismo produz, como os fitocanabinóides da planta. O THC é um dos raros fitocanabinóides conhecidos com a capacidade de alterar a consciência.

Foto: Blog200porcento.com

Apesar das alegações de saúde, Aldi diz que produtos têm apenas “sementes de cânhamo em pó”

Após terem sido questionados em relação aos conteúdos, Raquel Rodrigues, responsável pela comunicação externa do Aldi em Portugal, assegurou ao CannaReporter® que os textos foram escritos pela nutricionista, “que recorreu à terminologia que considerou adequada ao tema, e tinham como objetivo fazer uma breve introdução sobre o que é a Cannabis sativa, que está presente na composição dos quatro produtos que tivemos em destaque.” A responsável explicou ainda que “na fórmula dos mesmos, é possível encontrar sementes de cânhamo em pó”. E concluiu, dizendo que “lamentamos que alguma parte do texto presente no folheto tenha ficado menos clara ou confusa, sendo que o nosso propósito era apresentar alguns dos benefícios que estes produtos têm.” De acordo com Rodrigues, os produtos em questão não estão no “sortido fixo” da marca, sendo apenas uma oferta temporária.

No entanto, se por um lado tanto o óleo de sementes de cânhamo e as sementes em si têm as propriedades nutricionais, não se enquadram no âmbito da “canábis medicinal”. Por exemplo, o óleo de sementes tem um rácio ideal de Omega 3 e 6 (3:1) e é muito rico em ácido linoleico; e as sementes são ricas em Vitamina E, ferro, cálcio, magnésio, potássio e uma excelente fonte de fibra e proteína vegetal. Mas a canábis medicinal lida com um universo químico completamente diferente. A sua riqueza está nos fitocanabinoides (e nos terpenos, nos flavonoides…) contidos nos tricomas que a flor não-polinizada da planta fêmea produz. Não nas sementes, portanto.

Desconhecimento, aproveitamento ou publicidade enganosa?

Sendo que a planta é a mesma – Cannabis sativa L. – e que o nome aparece na caixa dos produtos do Aldi, pode mesmo ter sido a confusão recorrente entre cânhamo e canábis e a falta de conhecimento que levou à publicação daquelas informações. No entanto, o facto é que a informação sobre os canabinóides e o sistema endocanabinóide divulgada nos folhetos do Aldi não se aplica, na verdade, ao produto que anunciam e vendem. Poderá, então, considerar-se publicidade enganosa?

Em Portugal, o Código da Publicidade (DL n.º 330/90, de 23 de Outubro) determina o seguinte:

Artigo 10.º

Princípio da veracidade

1 – A publicidade deve respeitar a verdade, não deformando os factos.

2 – As afirmações relativas à origem, natureza, composição, propriedades e condições de aquisição dos bens ou serviços publicitados devem ser exactas e passíveis de prova, a todo o momento, perante as instâncias competentes.

Artigo 11º

Publicidade enganosa

“1 – É proibida toda a publicidade que seja enganosa nos termos do Decreto-Lei n.º 57/2008, de 26 de Março, relativo às práticas comerciais desleais das empresas nas relações com os consumidores.

2 – No caso previsto no número anterior, pode a entidade competente para a instrução dos respectivos processos de contra-ordenação exigir que o anunciante apresente provas da exactidão material dos dados de facto contidos na publicidade.”

O artº 19 da mesma lei, atribui a competência da fiscalização à ASAE; e o artº 21 determina que “a violação do disposto nos artigos 4.º a 12.º constitui contraordenação económica grave, punível nos termos do Regime Jurídico das Contraordenações Económicas (RJCE).”

Dependendo da natureza e da gravidade da ação e das medidas tomadas pelo infrator para atenuar as faltas, de ser uma prática recorrente ou não e da dimensão da empresa anunciante, entre outros, as coimas podem ir dos 500 Euros até os 90 mil Euros; ou até aos 2 milhões de Euros caso “não esteja disponível informação sobre o volume de negócios anual do infrator”. No caso de haver mais do que um agente, todos têm responsabilidade, ficando sujeitos às mesmas sanções.

Uma notícia da RTP de Dezembro de 2023 informava que, só nesse ano, “A Direção-Geral do Consumidor (DGC) fiscalizou 2.583 mensagens publicitárias em meio digital, (…) o que resultou na aplicação de 180.000 euros em coimas, sobretudo por publicidade enganosa”.

Essa mesma entidade, a DGC, que visa a proteção dos consumidores, na sua página da Internet identifica este tipo de publicidade como sendo aquela que anuncia “bens ou serviços ‘milagrosos’, que exploram a credulidade, superstição e medo dos destinatários – sendo estes “na sua maioria apresentados como tendo efeitos garantidos no bem-estar e saúde dos potenciais consumidores, permitindo tratar entre outras doenças, a obesidade, e as disfunções sexuais, alterar as características físicas e aparência, sem que para tal seja apresentada qualquer comprovação científica.” Fiquem com isto em mente.

“As instituições andam sempre a passar a bola umas às outras”

De novo, já não é a primeira vez que o CannaReporter® e outros meios informam sobre este tipo de práticas. Desde 2019 já houve vários casos similares. Mas se isto não é permitido, o que fazem as autoridades responsáveis neste tipo de casos?

O CannaReporter® questionou todos os organismos envolvidos quando se trata de venda de produtos relacionados com canábis e cânhamo. O Infarmed – Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde I.P., a quem compete a pasta da canábis medicinal, respondeu-nos que “os produtos anunciados tratam-se de suplementos alimentares, pelo que compete à ASAE e à DGAV a sua fiscalização, não obstante se tratarem de produtos à base da planta da canábis e na publicidade aos mesmos serem reclamadas propriedades curativas ou preventivas de doenças.”

A Direção Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV), por seu lado, afirmou não ter conhecimento sobre os folhetos do Aldi e explicou que estas situações “são reportadas à autoridade competente fiscalizadora, que é a ASAE, que fará a sua avaliação da situação e atuará em conformidade.”

Em resposta às várias questões colocadas pelo CannaReporter®, a ASAE limitou-se a responder: “Relativamente ao assunto em epígrafe [questões relacionadas com produtos ALDI e outros supermercados], informa-se que a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica está a acompanhar a matéria no âmbito das suas competências.”

Apesar da insistência para tentarmos entender como estavam a acompanhar a matéria e o que faziam nestes casos, a ASAE não voltou a responder. Durante as cerca de três semanas que estivemos à espera de resposta da DGAV e da ASAE, restou apenas a dificuldade em comunicar com as instituições competentes e a falta de transparência das mesmas na hora de responder às dúvidas dos consumidores.

Após o Comunicado da ASAE de Julho, a anunciar a uma apreensão de produtos com canábis numa loja do Porto, voltámos a contactar a entidade, tendo conseguido falar com Ana Maria Oliveira, Inspetora-Chefe, que explicou ao CannaReporter® que “as marcas não são obrigadas a informar [esta a autoridade]. Se for um suplemento novo, são obrigadas a informar a DGAV, mesmo que seja temporário, mas não a ASAE”.

Seja como for, as marcas ou empresas que lançam e comercializam produtos, na maioria das vezes não informam as autoridades e as mesmas só agem quando há alguma denúncia ou através das fiscalizações regulares que mantêm, quer sejam aleatórias ou não.

No caso de denúncia, investigam e seguem o procedimento estipulado na lei ou nos regulamentos, de acordo com a situação encontrada.

“O canabidiol (CBD) extraído da planta não é um ingrediente autorizado para fins alimentares ou cosméticos”

Na Circular Informativa “Utilização de canábis e seus derivados em produtos cosméticos”, publicada pelo Infarmed em Fevereiro de 2022, diz-se expressamente:

“A inclusão de CBD ou outros canabinóides, que existem naturalmente na planta de canábis, não é permitida, por serem obtidos através da preparação de extratos ou tinturas de Cannabis ou da sua resina.

Estão incluídas nesta proibição as substâncias “Cannabidiol – Derived from Extract or Tincture or Resin of Cannabis ” e “Cannabis Sativa Leaf Extract”. Estas designações surgem no COSING5 mas a sua inclusão em produtos cosméticos não está autorizada. Excetuam-se desta proibição a utilização de substâncias/preparações obtidas a partir de sementes de plantas com teor em THC ≤ 0,2%, como por exemplo o óleo de sementes de canábis, de variedades inscritas no Catálogo Comum de Variedades de Espécies Agrícolas.”

Excluem-se, no entanto, “outras origens de CBD que não são abrangidas pelo anexo II do Regulamento (CE) n.º 1223/2009 relativo aos produtos cosméticos, mas que estão em análise na União Europeia e na Organização Mundial de Saúde.” Nestes casos, a sua utilização em cosméticos “deve ser analisada caso a caso e carece sempre de uma avaliação de segurança”, explicam.

No referido regulamento não se encontra qualquer menção específica ao canabidiol ou a derivados do mesmo, mas o item 306 do Anexo II identifica: “Estupefacientes: todas as substâncias enumeradas nos quadros I e II da Convenção Única sobre os Estupefacientes, assinada em Nova lorque a 30 de Março de 1961” como substâncias proibidas. Ora, uma das substâncias incluídas no quadro I é, efetivamente, “Cannabis, resina de cannabis, extractos e tinturas de cannabis”.

Para poder vender qualquer cosmético no mercado português, o mesmo terá de cumprir os requisitos desse mesmo regulamento, assim como o disposto no Decreto-Lei n.º 189/2008, de 24 de setembro.

Depois, o fabricante deverá registá-lo na plataforma europeia Portal de Notificação de Produtos Cosméticos (CPNP) e, depois ainda “proceder ao registo no Infarmed” através das aplicações SRE COS – Sistema de registo de entidades de cosméticos e SRCT – Sistema de gestão de receitas e cobrança de taxas, de acordo com a Deliberação n.º 15/CD/2013.

Apesar de que no seguimento do caso Kannavape o Tribunal de Justiça Europeu determinou que o canabidiol (CBD) extraído da planta da canábis não deve ser considerado uma droga à luz da Convenção Única (ECJ C-663/18), em Portugal prevalece a legislação nacional.

Mas efetivamente, existem diversos produtos no mercado contendo CBD. É fácil encontrá-los nas farmácias, uns classificados como suplemento alimentar e outros como cosméticos. Por exemplo, as pomadas para o alívio das dores musculares Fisiocrem Cannabis ou a Bliss CBD, estão registadas como produtos cosméticos (com IVA 23%), sendo a sua autorização da responsabilidade do Infarmed. Ambos mencionam “Extrato de Canabidiol (CBD puro)” na sua composição e em nenhuma das embalagens é indicado qual o tipo de CBD que contêm, nem a percentagem deste canabinóide.

E no site das Farmácias Portuguesas, o Fisiocrem Cannabis, por exemplo, aparece com a seguinte Descrição: “Fisiocrem Cannabis é um creme com canabidiol, óleo das sementes de canhâmo [sic], arnica, hipericão e extrato de baunilha. Estimula a microcirculação cutânea e gera efeito calor potenciando a ação dos constituintes ativos.”

Questionámos novamente as marcas e o Infarmed acerca da legalidade destes produtos. A resposta não chegou.

O facto é que enquanto estes produtos vão aparecendo e desaparecendo das prateleiras, há pequenos empresários que estão a ser sistematicamente prejudicados devido à situação dúbia do CBD e dos produtos de canábis/cânhamo. E, ao mesmo tempo, os consumidores estão sistematicamente a serem mal-informados ou induzidos em erro, seja pela razão que for – até mesmo pela situação legal de produtos que se comercializam para determinado fim. Na verdade, toda a gente sabe que os consumidores os procuram por outras razões, muitas vezes ligadas à saúde.

Incenso, colecionáveis e outras falácias

Então, noutro lado do espectro das grandes marcas e cadeias de supermercados, estão aqueles pequenos comerciantes, proprietários de lojas de CBD, os quais trabalham habitualmente com produtos de/com cânhamo que podem conter tanto CBD como sementes de cânhamo ou outros canabinóides, do Delta-8-tetrahidrocanabinol (um canabinóide sintétizado da planta, com um efeito mais suave que o THC) ao Hexahydrocannabinol (HHC), um semissintético que já está a ser proibido em alguns países pelos efeitos adversos; ou mesmo CBD sintético. Retenham mais este dado.

Mas a informação disponível no site da ASAE (que necessita atualização, dado ainda referir que o máximo de THC permitido para o cânhamo é de 0,2%, quando a lei que vigora desde Janeiro de 2023 o actualizou para 0,3%) afirma que “relativamente à utilização de canabinoides, nomeadamente canabidiol (CBD) e o delta-9-tetraidrocanabinol (THC), cannabigerol (CBG), cannabinol (CBN) e outros, usados em alimentos, à semelhança das partes de planta e seus extratos, são considerados novos alimentos não-autorizados (COM, 2019), não tendo sido demonstrado um historial de consumo significativo e seguro na União Europeia antes de 15 de maio de 1997. Assim, a comercialização de alimentos com estas substâncias não está autorizada.”

Não está autorizada, mas como explica Henrique Pinto, proprietário da headshop e loja de CBD Clorofila 560, é possível vender produtos contendo estes canabinóides, porque os rótulos dizem que não são para consumo. “Para ter flores não é preciso licença – porque as flores são consideradas um “objeto colecionável” e a rotulagem tem que dizer que não é para consumo. Portanto, basta ter o CAE adequado ao que vais vender e podes comercializar”. Em relação às sementes para alimentação animal e humana, também qualquer tipo de comércio as pode vender, mas sendo um alimento, “já é preciso pagar a uma empresa de Higiene e Segurança”.

Com os comestíveis é que a coisa se complica. “Os comestíveis que digam CBD mas que apelem a qualquer coisa medicinal, a ASAE leva tudo”, diz Henrique. Mesmo que não tenham nenhuma menção a ser um produto medicinal, a entidade fiscalizadora é exigente com os comestíveis.”

“Se o CBD for sintético, então pode ser usado”

Ricardo (nome fictício), gerente de uma conhecida cadeia de lojas de CBD e que prefere não se identificar, confirma precisamente isso. Desde que abriram, já receberam três visitas da ASAE, a última no Verão de 2023, e todas “focadas no alimentar e na rotulagem”, conta. “Nunca pediram nada de especial nem de específico, os óleos de CBD nunca foram controlados, nunca nos pediram nenhuma coisa. O foco deles é nos alimentares.”

Nesse campo, lembra o responsável pelas lojas, quiseram saber “se os alimentares tinham canabinóides ou não – para ver se se tratava de um novo alimento ou não, e se era CBD sintético ou não, porque a União Europeia tem uma excepção: se o CBD for sintético, então pode ser usado. De resto era a rotulagem”, diz.

Alguns dos problemas podem mesmo dever-se ao desconhecimento e à falta de formação das autoridades. Há comerciantes que se queixam disso: “Os próprios agentes nem sabem o que procuram porque não têm a formação nem a informação necessária para saber o que estão à procura e o que estão a controlar”, conta Ricardo.

O problema é que os canabinóides sintéticos, têm vindo a revelar diversos estudos, podem ser bem mais perigosos do que a canábis per se e já têm criado alguns problemas, porque entram em conflito com o nosso Sistema Endocanabinóide. Mas não sendo proibidos (em Portugal) e tendo em conta a forte procura de produtos para alterar a consciência, puxa-se do vazio legal.

Mesmo cumprindo todos os requisitos, há sempre por onde pegar

O canabidiol (CBD) é classificado a nível europeu como uma “novel food”. No entanto, ainda não está aprovado no âmbito da normativa dos novos alimentos para poder ser considerado 100% legal. E é aí que a lei portuguesa a as autoridades (DGAV, ASAE, Infarmed, polícias) se baseiam para banir esta substância no nosso país.

Para Ricardo, “há um grande desconhecimento do que se pode e não se pode. Há um contra-senso e um cinzento muito grande. Se por um lado tens uma diretiva da Nações Unidas (de Setembro 2020) que diz que o CBD não é uma substância psicotrópica, não é controlada; depois temos que aqui é proibida”.

Em termos de rotulagem, há certos requisitos que têm que ser cumpridos, caso contrário dão lugar à apreensão dos produtos e a contra-ordenação. Todos os rótulos e embalagens têm de estar escritos ou traduzidos para português, indicar a composição do produto, e se contiver canabinóides, indicar a respetiva percentagem. Neste aspeto, sendo que os óleos são para aromaterapia e as flores são consideradas colecionáveis ou incenso, não se entende a razão para que isso seja obrigatório. Mas de acordo com Pedro, nome fictício de outro comerciante que também não se quis identificar: “CBD é colecionável – não tem que ter [as percentagens]. Mas agora a ASAE começou a tratar como se fosse produto alimentar – tendo que cumprir as regras dos produtos alimentares, que segundo informaram, estão na regulamentação europeia – onde não consta a canábis.”

O que está na Regulamentação europeia em matéria de rotulagem dos alimentos é o seguinte:

Artigo 22.

Indicação quantitativa dos ingredientes

  1. A indicação da quantidade de um ingrediente ou de uma categoria de ingredientes utilizada no fabrico ou na preparação de um género alimentício é obrigatória caso esse ingrediente ou essa categoria de ingredientes:
  2. a) Figurem na denominação do género alimentício ou forem habitualmente associados à denominação pelo consumidor;
  3. b) Sejam destacados no rótulo por palavras, por imagens ou por uma representação gráfica; ou
  4. c) Sejam essenciais para caracterizar um género alimentício e para o distinguir dos produtos com que possa ser confundido devido à sua denominação ou ao seu aspecto.”

Portanto, em produtos que sejam géneros alimentícios, no caso de na embalagem se referir canábis (mesmo que tenha só a folha, que equivale à “imagem” da alínea b), CBD ou outros canabinoides, então terá de dizer qual a percentagem da substância.

Na experiência das lojas de canábis, “sejam flores, óleos ou comestíveis”, diz Henrique, “se tiverem CBD, têm de indicar a quantidade de CBD por grama”. E para todos os produtos que contenham canábis ou cânhamo (partes ou sub-produtos) devem ter os respetivos certificados com as fichas do mesmo e a identificação da planta, nos quais é obrigatório vir especificados os canabinóides presentes: “valores de THC (abaixo de 0,3%), outros canabinóides identificados, os Deltas (HHC e Delta-8, mas os Delta-7 e Delta-9 têm mesmo que vir especificados), assim como o produtor para as flores e os óleos. No entanto, não é preciso fazer análises a pesticidas — em Portugal não, mas a nível europeu sim, dado que as flores são para coleção e não para consumo”, explica.

       

Tendo tudo isto em conta, surge uma pergunta recorrente: como podem existir estas lojas se o uso de CBD é ilegal? A resposta de Henrique é clara: “Estamos num limbo…”. Ou seja, tecnicamente, estas lojas não vendem produtos com CBD para alimentação e cosmética. A indicação nos rótulos é que têm outros fins, portanto, os produtos que vendem são perfeitamente legais. O que as pessoas fazem com eles não é da responsabilidade dos comerciantes, assim como quem vende facas não é responsável pelo que os clientes irão fazer depois com elas.

Pequenos comerciantes e grandes cadeias de supermercados: Dois pesos e duas medidas?

No início deste ano, o proprietário de uma loja de produtos de cânhamo prestou várias declarações a meios de comunicação e não se quis identificar, pelo que o iremos chamar Pedro. Após uma fiscalização aleatória, recebeu uma contraordenação por causa da sua loja online. Foram detetadas infrações como “indução em erro ao consumidor” por estarem enumerados alguns benefícios associados ao chá, e “falta de fornecimento da informação pré-contratual”, que tem a ver com a indicação de custo de envio e as datas previstas de expedição e chegada.

Em Portugal, no site dos supermercados Continente, por ir buscar um termo de comparação, pode ler-se sobre o Chá de Hibisco que comercializam: “Um tipo de chá muito procurado pelas suas propriedades antioxidantes e pelos benefícios que proporciona para a saúde”, explicando longamente por que “promove a saúde cardiovascular” e “contribui para o relaxamento dos vasos sanguíneos, o que ajuda a prevenir e a controlar a hipertensão arterial”, assim como “contribui para a diminuição do colesterol LDL e para o aumento do colesterol ‘bom’ (HDL)” e “atua na prevenção de doenças e infeções”, entre outras coisas. Este caso e o da Aldi são apenas dois exemplos, mas há muitos outros.

É certo que tanto a ASAE como as autoridades em geral, fazem o seu papel de fiscalizadores, controlando milhares de situações e de produtos. No entanto, quando estas recaem sobre pequenos empresários e comerciantes que fazem tudo por ter os seus produtos e os seus estabelecimentos em ordem e, frequentemente, tropeçam em regulamentos que deixam lugar a interpretações dúbias ou com situações em que parece haver dois pesos e duas medidas, prevalece um sentimento de injustiça que parece difícil de conter.

Tendo ainda em conta a parca capacidade financeira de muitos destes empreendedores e o rombo que estas coimas ou processos-crime representam, já houve situações em que as ações das autoridades enterraram os negócios. Em alguns casos, como o das lojas Green Swallow, para se vir a provar mais tarde que a punição não tinha fundamento, e na maior parte dos casos para acabarem em nada, a não ser custos judiciais para os envolvidos e para o Estado português.

Dos quatro empreendedores que o CannaReporter® contactou, três preferiram manter-se anónimos, o que demonstra que na comunidade se sente medo de falar. Os testemunhos que ouvimos incidiram em que, quem manifesta a sua discordância com o status quo e com o marco legal atual, acaba por sofrer represálias a modo de visitas e fiscalizações “aleatórias” mais frequentes das autoridades. Estas às vezes envolvem processos-crime e sempre terminam em coimas – normalmente por faltas menores que, como já vimos, se verificam em tantos e tantos produtos e sites. “A ASAE dá em cima destas ninharias: a maneira como se publicitam os produtos, como se expõem ao público, a rotulagem: É proibida a venda a menores de 18 anos, em PT temos que escrever que é flor de cânhamo; etc.”, conta Henrique.

Muitos comerciantes não têm problemas, mas outros são alvo sistemático das fiscalizações, nas quais a ASAE recorre a qualquer falha para autuar, sem dar pré-avisos ou prazos para se fazerem as devidas emendas.

Como testemunhámos enquanto tentávamos elaborar esta reportagem, as autoridades portuguesas são muito pouco acessíveis: esperámos mais de uma semana pela resposta da DGAV e do Infarmed, passámos dias a ligar para a ASAE, sempre até cair chamada, e nunca fomos atendidos em nenhuma das opções. As autoridades escusam-se em respostas vagas, afunilam-se nas suas diferentes competências, remetem para outros departamentos que não respondem, e debitam decretos e regulamentos que deixam jornalistas, cidadãos e empresários com mais perguntas do que respostas. Esta foi a nossa experiência na primeira pessoa.

Enquanto a situação do CBD se mantém neste limbo e houver aleatoridade nas fiscalizações, levando a dois pesos e duas medidas, quem perde são os consumidores e os pacientes que recorrem a estes produtos.

Foto: Blog200porcento.com

 

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Artigo editado a 14 de Agosto de 2024.

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* Margarita Cardoso de Meneses adota o novo acordo ortográfico.

 

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[Aviso: Por favor, tenha em atenção que este texto foi originalmente escrito em Português e é traduzido para inglês e outros idiomas através de um tradutor automático. Algumas palavras podem diferir do original e podem verificar-se gralhas ou erros noutras línguas.]

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