Entrevistas
Luna Vargas: “Quanto mais informação e educação tivermos, mais benefício tiramos das substâncias”

Luna Vargas é antropóloga, educadora, palestrante e fundadora da Inflore, uma plataforma educativa que se dedica a formar profissionais no sector da canábis. Nasceu no Brasil e percorre o mundo para pesquisar processos de legalização em diferentes países, tendo passado recentemente vários meses na Tailândia. Com mais de 50 mil seguidores no Instagram, Luna é já uma referência internacional na educação e formação de consultores em canábis na língua Portuguesa.
Em breve, será oradora na Expo Cannabis Brasil, a maior conferência e exposição brasileira sobre canábis, que se realiza de 15 a 17 de Novembro de 2024, em São Paulo. Mas as vivências e experiências de Luna estendem-se além-fronteiras.
Falámos com Luna Vargas para saber um pouco mais sobre a sua vida, a sua relação com a canábis e o seu percurso profissional como educadora sobre as propriedades desta planta milenar.
Luna, ainda te lembras do que querias ser quando eras criança?
Nunca ninguém me fez essa pergunta, mas eu lembro-me, sim! A primeira coisa que eu quis muito, era trabalhar com tartarugas e baleias; ser oceanógrafa ou assim… bióloga marinha, acho que era o que queria ser. Depois, uma coisa que eu fiz antes das Ciências Sociais, que era um sonho também, foi o curso de Relações Internacionais. Acho que hoje faço um pouco as relações internacionais da canábis no mundo.

Além da legalização da canábis, Luna Vargas é apologista da regulamentação dos psicadélicos e outras substâncias psicoactivas. Ilustração de @bicicletasemfreio, na sua página do Instagram, onde tem mais de 54 mil seguidores
Mas acabaste por te formar em Antropologia, não foi?
Eu fiz Ciências Sociais, que incluem Antropologia, Sociologia e Política, e depois fiz o meu mestrado em França, em Mediação Cultural e um outro mestrado em Antropologia Social e Etnomusicologia.
Como é que isso tudo acabou por se aplicar à canábis?
Foi bastante interessante, porque fui a Cuba aos quinze anos de idade, nos anos 90, e quando cheguei lá já me interessava em saber sobre a canábis em Cuba. Depois, passei um tempo em Espanha, quando ainda era adolescente. Foi a primeira vez que eu fumei haxixe que vinha de Marrocos, então sempre esteve no meu consumo e nas minhas causas sociais, de luta pela legalização, contra a detenção de pessoas, porque é uma coisa muito triste ver os amigos a serem presos por consumirem canábis e a dificuldade no acesso a alguma coisa de qualidade. Então, sempre foi parte da minha militância; depois fui para Marrocos, quando estava a fazer o mestrado, portanto isso sempre acompanhou a minha vida em paralelo, e depois só coloquei no centro.
Queres contar-nos um bocadinho mais sobre essa tua primeira experiência com canábis?
A primeira vez que eu fumei, estava em Goiânia, na cidade onde cresci, perto de Brasília, e nessa primeira vez acho que o que foi mais interessante, na verdade, foi que no Brasil havia acesso a uma canábis, a que chamamos de “prensado”, que nem há na Europa (aqui na Tailândia vende-se e chama-se Thai Stick). Eu devia ter uns catorze anos. Depois, quando fui pra Espanha, com quinze, estava na Universidade de Salamanca a frequentar aulas de Castelhano e conheci umas pessoas que tinham haxixe com tabaco, que eu nunca tinha experimentado, e foi a primeira vez que senti aquele sabor maravilhoso de um concentrado, de um haxixe bom. Desde então, passei a procurar aquele sabor e não o que eu tinha no Brasil. Foi uma das grandes experiências, essa primeira vez com um haxixe marroquino em Espanha.
“A minha prioridade sempre foi a qualidade”
Alguma vez sentiste o estigma de olharem de lado para as pessoas que utilizavam canábis?
Vindo do Brasil e sendo branca, posso dizer que nunca tive muito estigma, porque eu fui criada em meios muito alternativos. Os meus pais, toda a gente usava canábis e isso não era um grande tabu. Eu acho que tive mais estigma quando eu tinha dreads, quando eu era Rasta e aí, nessa época, lembro-me de haver pessoas a tratar-me mal por causa do cabelo. Mas acho que nunca sofri muito estigma, principalmente comparando com a realidade brasileira, que é uma realidade muito difícil quando não és branco e usas canábis.
E como é que tem sido o teu acesso à canábis?
Eu sempre comprei; sempre viajei muito e, então, quando morava em França, tinha uma dealer, que era uma mulher que me vendia quando eu tomava chá com ela. Ela comprava aos africanos um haxixe marroquino. Lembro-me também de cultivar; cultivei mais no Canadá, mas eu não sou cultivadora; a minha prioridade sempre foi a qualidade, então eu preferia comprar alguma coisa, pouca, mais cara, do que comprar uma grande quantidade que não tivesse qualidade. Isso foi sempre um critério, não só para a canábis, mas para todas as drogas.
E como é que tem sido a tua utilização de canábis ao longo do tempo?
Isso é muito interessante, porque depois de ter começado a trabalhar com canábis, o meu uso mudou muito. Eu digo sempre que quando se tem conhecimento sobre essa planta, sobre o método de consumo, sobre os efeitos… temos muito acesso, hoje em dia, à pesquisa científica e isso fez mudar muito o meu uso. Primeiro, porque precisamos de muito poucos canabinóides para poder ter um bom efeito. Eu não tenho mais vontade de ficar dentro daquela cultura stoner de fumar até cair. Hoje em dia eu preciso de muito menos canábis do que precisava antes e notei uma diferença dos trinta para os quarenta anos; preciso de muito menos e, como sempre, de mais qualidade e outros métodos de consumo. Antes de mudar para o Canadá, eu tinha experimentado o uso tópico, o uso de lubrificante vaginal e supositórios, que me ajudaram muito nas dores de coluna e nas cólicas menstruais. O uso tópico do THC para dores musculares, para mim, é muito bom, bem como a vaporização. Hoje em dia, temos mais possibilidades de vaporizar, com aparelhos novos que há no mercado e isso melhora também a experiência do consumo e a qualidade, com mais extracções como o Bubble Hash, por exemplo. Isto é algo que até há dez anos pouca gente falava e hoje em dia isso tem um mercado muito grande, é um sub-nicho da indústria da canábis, focado em extracções sem solventes, e até o acesso a isso muda também muito o consumo. Mas se tiver de escolher uma coisa para ser a de uso mais relevante e impressionante que eu já tive, foi o uso do supositório.
Os supositórios ainda são uma forma talvez mais desconhecida de utilização, ou pelo menos não creio que haja assim muita gente a fazer. Como é que tiveste acesso a eles?
Eu gosto sempre de falar desses supositórios por dois motivos. É a mistura de dois tabus – sexo e partes íntimas, com canábis e THC. Dois tabus num produto só. (risos) As pessoas não gostam de falar de sexo e canábis e eu não me importo de falar. Eu prefiro que as pessoas tenham um benefício medicinal e se eu tiver que falar da minha experiência, eu partilho, para que outras pessoas possam ter esse benefício. Eu conheci o óvulo vaginal, que é um supositório, com um grupo de mulheres a partilhar informação: “fazes os supositórios, aplicas, é vaginal, e isso melhora e não te deixa “pedrada”. E eu pensei: vou experimentar! Porque essas mulheres usavam também para o parto, de várias formas. E o supositório no recto para a dor, tomei conhecimento lendo pesquisas científicas de relatos de pacientes com cancro e eles diziam que, muitas vezes, a dor do cancro, dependendo do estado, é tão forte que eles têm que usar uma dose muito grande e isso deixá-los-ia “pedrados” demais, mas para aliviar a dor tinha que ser assim. Então, o que é que eles faziam? Colocavam um supositório, porque assim evita-se o metabolismo no fígado e quando se salta o metabolismo do fígado e vai directamente do intestino para a corrente sanguínea, não se fica assim tão “pedrado”, consegue-se suportar uma dose maior e aliviar a dor mais rapidamente. Então experimentei, para a minha dor ciática. A primeira vez que utilizei, estava em casa, sem conseguir levantar-me da cama. Fui eu que fiz o meu supositório, porque também não havia à venda. Hoje em dia, no mercado legal canadiano, já há um supositório ou dois à venda. Ainda ninguém fala disso. Então, fiz, apliquei, e, em três minutos, estava a dançar na sala!

Luna Vargas esteve em Lisboa, a convite da PTMC – Portugal Medical Cannabis, em 2022. Foto: Renato Velasco | CannaReporter®
Ah, isso é incrível!
Para mim, foi incrível. Eu pensava: não é possível que isso esteja a acontecer! O que é que aconteceu? Parece que é magia, mas não é magia, é o sistema endocanabinóide.
Então, na tua experiência pessoal, funcionou e recomendas…
Funciona e recomendo! E o efeito colateral é que se dorme muito bem! Vejo isso com a minha mãe, também, na menopausa, funciona para os hot flashes, para melhorar o sono, e para a lubrificação, porque, quando a mulher vai ficando mais velha, vai perdendo a lubrificação… É um game changer! (risos)
O que foste aprendendo acabou por se transformar numa partilha de conhecimento com os outros, o que te levou à criação da Inflore. Como é que surgiu esta plataforma de educação sobre canábis?
Eu digo sempre que há duas formas: uma é por prazer e a outra é por necessidade. Então, eu comecei a trabalhar com educação por necessidade, porque quando eu entrei na indústria da canábis, no Canadá, em 2018, ninguém sabia nada, tinha acabado de começar a legalização, as pessoas vendiam sem saber e não havia médicos para ajudar nesse processo. E aí, naquele momento, eu pensei: há aqui muita responsabilidade envolvida; não dá para vender canábis sem ter conhecimento do que se está a fazer, porque estamos a lidar com a saúde das pessoas, mesmo que seja um mercado recreativo. O paciente não quer saber se é o mercado recreativo, mesmo porque a planta é a mesma, ele quer é uma solução para aquele problema, em que o médico não ajudou. Criei a Inflore com essa ideia de fazer uma espécie de redução de danos para o mercado, para poder treinar as pessoas sobre ciência da canábis, sobre actuação no mercado.
Como funcionou o mercado? Estavas à espera que muita gente quisesse aprender sobre canábis ou tiveste alguma dúvida?
Eu não tinha dúvidas, porque eu via necessidade. Em Vancouver, por exemplo, havia mais de cem dispensários, cada um, pelo menos, com cinco pessoas a trabalhar, e só numa cidade eu tinha aí, pelo menos, umas quinhentas pessoas, que precisavam de perceber o que eram canabinóides, terpenos, métodos de consumo, a melhor forma de vender, dosagens… Mesmo que seja para ir a uma festa, se uma pessoa quiser canábis, é preciso ter um bom conselho sobre a dosagem, sobre o tipo de produto, porque essa pessoa não pode ter uma bad trip; isso ia acabar com a festa dela. Então, ela tem que ter uma conduta e um guia, que seria, nesse caso, quem vende, para a poder ajudar a ter a melhor experiência de festa que ela pode ter, porque essas substâncias todas, assim como o álcool, assim como todas as outras drogas, usam-se para uma pessoa poder sentir-se bem e achar bom. Por isso, quanto mais informação e educação tivermos, mais benefício tiramos das substâncias.
A tua formação é essencialmente online, como são os cursos da Inflore?
É uma formação de consultor canábico. É um curso para as pessoas conseguirem compreender, pensar, articular a canábis e conseguirem aplicar isso ao mercado. Eu criei a Inflore porque íamos aos congressos onde estavam o Dr. Ethan Russo, a Dr.ª Bonni Goldstein, e todos os maiores pesquisadores das áreas, a fornecer imensa informação importante e, do outro lado, eu tinha o budtender que era quem não sabia nada e quem não tinha dinheiro para ir a esses eventos. E, portanto, achei que tinha que aproximar esses dois mundos da mesma indústria, o da investigação científica e o dos budtenders das lojas de canábis. São essas pessoas que têm de ter essa informação, porque são elas o contacto com o grande público.
Tens ideia de quantas pessoas é que já formaste desde que iniciaste a Inflore?
Mais de 1.000 pessoas em 21 países.
Já viveste em vários países e agora estás na Tailândia. Como é que vês a situação da canábis nos vários países em contraste com a Tailândia?
Boa pergunta! Essa é um pouco a minha pesquisa. Nesse tempo que eu passei na Europa, estive em sete países a fazer pesquisa sobre regulamentação e legalização, e vendo essa particularidade de, por mais que… há sempre essa ideia de “primeiro aprova-se o medicinal, depois o recreativo” ou então “primeiro o cânhamo, depois a canábis toda” e vamos vendo formas diferentes, a cultura local é muito importante. Isso é uma coisa que eu vejo fazer muita diferença. Aqui, na Tailândia, faz-se um uso tradicional da canábis. Toda a gente tinha em casa, os avós… era plantado em casa, tanto é que está na rua! Eu estou numa vila onde há na rua, em frente aos bares e aos dispensários, e ninguém toca, ninguém rouba. Acho que a cultura local deu uma vantagem muito grande à Tailândia, que já conhece muito essa planta, já sabe do uso e também do uso tradicional de outras plantas, que é uma coisa que o ocidente perdeu muito. Estamos muito dentro da indústria farmacêutica e tudo o que ficou daquela história da avó “Faz um chá, usa aquela planta” e tal, fica uma coisa da avó ou da bisavó, que vamos perdendo e que é muito triste de ver. Havia as raizeiras, pelo menos no Brasil, e essa cultura perdemo-la, porque há a indústria farmacêutica.
E o Canadá? Fez o caminho certo ou também tem, ainda, espaço para melhorar?
O Canadá é um mercado mais maduro; tem quase seis anos de legalização. Quando vemos a cena do mercado canadiano depois dessa meia década de legalização, o que notamos é que o Canadá fez uma overregulation, regulamentou demasiado, por isso tudo ficou muito caro. Todas as licenças são caras, manter o negócio é caro. Não se abre um negócio no Canadá, em nenhuma cidade, com investimentos de menos de dois milhões de dólares.
Pois, não é para toda a gente.
E também não há esse retorno. No Canadá – é um consenso – toda a gente sabe que a única pessoa que está a ganhar dinheiro no mercado da canábis é o governo, com as taxas, com os impostos, porque quem produz, ganha, quem vende, não ganha. Quem está a ganhar dinheiro é o governo; ele legalizou para isso. Mas eu acho que isso mata o pequeno produtor.

Luna vai ser oradora na Expo Cannabis Brasil, que decorre de 15 a 17 de Novembro, em São Paulo
A economia local…
A economia local, o family business, uma loja de família que tem um pai, uma mãe, com os filhos que trabalham, não há como sobreviver nesse mercado e isso é muito triste de ver… e é o que a Tailândia faz ao contrário, e que é lindo de ver. Na Tailândia, eles legalizaram para não fazer como a cerveja, porque a cerveja é um monopólio. Aqui há duas cervejas: um monopólio maior que é a Sheng, e a Singa. Quando foi legalizada a cerveja, aqui, entrou uma grande corporação, fez as cervejas e é o que toda a gente tem que consumir, basicamente; ninguém vai fazer uma cervejaria! E com a canábis eles disseram “Não, vamos fazer de modo diferente. Queremos que as pessoas possam ter acesso e qualquer pessoa vai ter licença.” Custa duzentos dólares, uma licença para se poder ter uma loja. Não é nada.
Recentemente, nas notícias, disseram que ia acabar o mercado recreativo e que a Tailândia ia voltar para trás, mas não há como voltar para trás na Tailândia, neste momento, pois não? Tu estás aí e o que é que vês, no dia-a-dia?
Não há como voltar para trás. Da maneira como eles abriram o mercado… só se voltasse à prisão perpétua, para conseguir acabar com o mercado. Toda a gente planta, toda a gente vende, há em todas as esquinas, há mais de 7000 dispensários com licença, fora todos os outros que não têm licença e que ninguém nunca vai saber que existem, ou seja, acho que é algo impossível. Pode ser que eles regulamentem, para modificar, para fazer alguma coisa diferente, para impor mais limites, talvez, porque aqui há muito poucos limites. O que o Canadá estabeleceu de limites, a Tailândia abriu. Por isso não dá para fazer muito bem a comparação, acho eu, porque a Tailândia vai ser uma nova forma de ver a canábis e eu vou dar um exemplo, que é o de aqui não haver limite de cultivo caseiro. No Canadá são quatro plantas, na Califórnia são seis plantas e na Tailândia é ilimitado. Podes ter quantas plantas quiseres, porque é uma planta! Era como se alguém te dissesse que só podias plantar seis cenouras em tua casa! Não, quem quiser plantar, vai lá e planta. As pessoas compram. É muito mais fácil comprar do que manter um cultivo.
____________________________________________________________________________________________________
[Aviso: Por favor, tenha em atenção que este texto foi originalmente escrito em Português e é traduzido para inglês e outros idiomas através de um tradutor automático. Algumas palavras podem diferir do original e podem verificar-se gralhas ou erros noutras línguas.]____________________________________________________________________________________________________
O que fazes com 3€ por mês? Torna-te um dos nossos Patronos! Se acreditas que o Jornalismo independente sobre canábis é necessário, subscreve um dos níveis da nossa conta no Patreon e terás acesso a brindes únicos e conteúdos exclusivos. Se formos muitos, com pouco fazemos a diferença!
Licenciada em Jornalismo pela Universidade de Coimbra, Laura Ramos tem uma pós-graduação em Fotografia e é Jornalista desde 1998. Vencedora dos Prémios Business of Cannabis na categoria "Jornalista do Ano 2024", Laura foi correspondente do Jornal de Notícias em Roma, Itália, e Assessora de Imprensa no Gabinete da Ministra da Educação. Tem uma certificação internacional em Permacultura (PDC) e criou o arquivo fotográfico de street-art “O que diz Lisboa?” @saywhatlisbon. Co-fundadora e Editora do CannaReporter® e directora de programa da PTMC - Portugal Medical Cannabis, Laura realizou o documentário “Pacientes” em 2018 e integrou o steering group da primeira Pós-Graduação em GxP’s para Canábis Medicinal em Portugal, em parceria com o Laboratório Militar e a Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa.
