Internacional
França tem “uma das legislações mais repressivas da Europa para a canábis”. Discussão é só sobre o uso medicinal e mesmo essa está muito atrasada

França é um dos poucos países da Europa que ainda não regulamentaram a canábis medicinal e nem quer ouvir falar de ‘uso adulto’ ou ‘recreativo’. Mas, por outro lado, é um dos maiores produtores do mundo de cânhamo e tem um comércio florescente de CBD. A canábis e o cânhamo estiveram em debate na conferência Science in the City International, que se realizou no dia 26 de Outubro, na La Cité du Vin, em Bordéus, organizada pela norte-americana Medical Resource Association. Fomos a Bordéus tentar perceber melhor qual é a situação actual da canábis em França.
Em Dezembro de 2018, Agnés Buzyn, Ministra da Saúde de França, reconheceu que o seu país já estava atrasado para um eventual cenário de legalização da canábis medicinal e considerou que as propriedades terapêuticas da planta eram relevantes para cinco condições médicas.
Seis anos depois, e após um projecto piloto que dura há quase quatro anos, o país continua numa ‘fase de transição’, onde as flores praticamente deixaram de existir. Por outro lado, a indústria do cânhamo, nomeadamente do CBD, parece estar bem implementada e a florescer, à custa de um quadro regulatório indefinido, ou uma ‘zona cinzenta’, como lhe chamam os produtores franceses (a situação específica do CBD será reportada noutro artigo).

La Cité du Vin, em Bordéus, onde decorreu o evento. Foto: D.R.
A conferência teve início com uma palestra do médico e paciente de Esclerose Múltipla, Pascal Douek, uma figura proeminente na investigação medicinal francesa, que fez uma introdução ao cenário actual da canábis medicinal no seu país. Douek é conhecido pelo seu extenso trabalho na concepção e implementação de ensaios clínicos, onde assume também um papel de defensor dos direitos e da segurança dos doentes. Nos últimos anos, Pascal Douek concentrou-se no avanço dos tratamentos em áreas como a oncologia, neurologia e cardiologia e publicou o livro “A canábis medicinal, uma nova chance – Porquê? Para quem? Como?”.
França: situação política instável não ajuda regulamentação da canábis medicinal
Estima-se que em França existam cerca de 800.000 pacientes que já poderiam beneficiar da canábis medicinal, mas apenas cerca de entre 2.500 a 3.000 foram registados num projecto piloto de acesso a canábis medicinal a que os franceses chamaram “experimento”.

O médico e paciente francês, Pascal Douek. Foto: D.R.
Pascal Douek, que integrou o primeiro comité científico de canábis medicinal junto da ANSM (a Agência Nacional de Segurança do Medicamento e dos Produtos de Saúde, equivalente ao Infarmed em Portugal), participa no experimento enquanto paciente de esclerose múltipla desde o seu início, em 2021. Começou a usar canábis há quatro anos e continua a utilizá-la para tratar os sintomas relacionados com a espasticidade.
Douek começou por salientar que a situação política instável de França nos últimos anos contribuiu para os atrasos na definição de um quadro regulamentar para a canábis medicinal.
“Em Dezembro de 2018, Agnés Buzyn, Ministra da Saúde na altura, reconheceu que o país já ia tarde para a legalização da canábis medicinal, porque vários outros países já o tinham feito. Considerou que as propriedades terapêuticas da planta eram relevantes para cinco condições médicas [dor neuropática, epilepsia, esclerose múltipla, cuidados paliativos e doenças oncológicas, e apenas se todos os tratamentos convencionais falharem] e que a utilização de canábis medicinal deveria ser permitida através de um ‘experimento’. Em 2020, os produtos derivados da canábis foram facilitados ao governo por empresas como a Tilray, Panaxia ou Aurora e em 2021 o projecto piloto começou, gratuito para os pacientes”, explicou Douek, durante a sua apresentação dedicada a explicar a situação actual da canábis medicinal em França
“Enquanto paciente, sonho com a acessibilidade”
O experimento começou com vários óleos e flores, apenas para pacientes que padeciam de dor neuropática ou espasticidade. Mas os médicos encontraram muitas dificuldades na utilização das flores enquanto medicamento. Nem eles nem as farmácias conseguiam explicar como funcionava o vaporizador [o Mighty, da Storz&Bickel], que dose se utilizava a cada vaporização, e os pacientes ficaram sozinhos e perdidos nesse processo.
“Muito poucos pacientes receberam uma prescrição para flores e entretanto elas foram retiradas”, afirmou Douek.
Dois anos depois, em Janeiro de 2024, apenas 1.800 pacientes continuam a participar e o experimento deveria ter passado à fase de generalização, mas isso ainda não aconteceu – e não há previsão de quando possa vir a avançar.

O livro de Pascal Douek foi publicado pela Solar em 2020
“Os ministros da saúde mudaram quatro vezes em três anos”, alertou Douek. “Hoje, França está num período de transição. O experimento está fechado para novos pacientes e as flores já não são permitidas. Alem disso, a canábis medicinal ficou de fora da proposta de financiamento da Segurança Social francesa (conhecida como PLFSS) para 2025. Entretanto, uma emenda a essa proposta já foi entregue pelos pacientes, com a ajuda da Santé Publique France”.
Seis anos depois, e após um projecto piloto que dura há quatro anos, o país continua numa ‘fase de transição’, onde as flores praticamente deixaram de existir. “Eu não sou perito em leis, sou um paciente e um médico focado na medicina. Enquanto paciente, sonho com a acessibilidade. E o preço também é um factor-chave: ter canábis medicinal gratuita é essencial para o acesso de todos os pacientes”.
Além disso, o médico alertou ainda para outras questões: “Enquanto paciente, gostaria de ter a canábis disponível nas farmácias de rua e não apenas na farmácia do hospital. Também deveriam ser incluídas mais patologias na lista de indicações terapêuticas, porque cinco são muito poucas, deixam muitos pacientes de fora. Temos apenas cerca de 500 médicos a prescrever canábis em França. Muitos médicos não sabem nada sobre canábis medicinal e têm uma ideia distorcida sobre ela. A canábis medicinal deveria fazer parte de todas as estratégias de tratamento dos pacientes, definidas numa base científica, o que ainda não acontece nos dias de hoje”.
Para Douek, a informação e a formação são essenciais para o avanço da canábis medicinal no país. “Formar os médicos é a chave para a canábis medicinal, porque sem formação não há prescrições médicas”, afirmou, deixando claro que os franceses partilham esta preocupação com o resto da Europa.
Para avançar com a fase da generalização do experimento, foi constituído um comité científico para reunir evidência e dados no sentido de aumentar a lista de indicações terapêuticas autorizadas. E Douek afirma que para isso acontecer em França serão necessários mais estudos.
Num painel que decorreu mais tarde, também Valerie Vedere, uma paciente que padece de HIV e utiliza canábis no seu tratamento, alertou para a questão do acesso. “Não nos esqueçamos de defender os doentes que pretendem ter direito à autoprodução em França. Muitos deles não puderam ou não quiseram integrar o experimento e para alguns o cultivo da planta é parte integrante do seu tratamento”.

A advogada francesa Marie Sanchez. Foto: Laura Ramos | CannaReporter®
No painel de discussão que se seguiu à apresentação de Pascal Douek, Marie Sanchez, advogada da NOOA Avocats, concordou sobre a necessidade de haver mais estudos em França. “Estamos numa fase de transição e generalização depois do experimento de canábis medicinal em França. Com o novo governo, tudo está atrasado e os decretos que deviam ter sido publicados para a fase da generalização em 2025 não foram publicados, por isso não vai acontecer em Janeiro”, afirmou.
De um ponto de vista legal, Marie disse que acredita que as regras aplicáveis à fase de generalização serão similares às do experimento. Sobre as dúvidas que permanecem em relação às flores, Marie Sanchez disse que de um ponto de vista legal não existe uma decisão final: “nada foi publicado, por isso não existe uma posição definitiva sobre esse assunto, mas os pacientes precisam de ter várias formas de acesso”, afirmou.
Marie Sanchez explicou ainda que, em França, para os produtos derivados de canábis serem reembolsados e/ou comparticipados, eles têm que estar registados e ter um preço definido, que resulta de uma negociação entre o governo e as farmacêuticas / produtores. “Por causa do reembolso, os medicamentos têm que estar registados, mas os produtos derivados da canábis têm regulamentos diferentes para serem comparticipados, por isso acredito que a generalização não vai acontecer tão cedo”, constatou. Esta é, de resto, uma situação similar à de Portugal, que também não tem ainda comparticipação para substâncias ou preparações derivadas de canábis. Para isso acontecer, o Parlamento terá de criar uma nova regulamentação, pois estes produtos não são considerados ‘medicamentos’, de acordo com as leis existentes.
Marie Sanchez concluiu que “França está a ficar para trás e os pacientes ainda não terão acesso. Vai demorar mais tempo, mas uma regulamentação forte e bem definida também significa uma estratégia mais forte, com linhas de produção e distribuição mais seguras”.

Hugues Péribére, CEO da Overseed. Foto: Laura Ramos | CannaReporter®
Por seu lado, Hugues Péribére, CEO da Overseed, disse que, apesar de estar optimista, o acesso à canábis medicinal em Janeiro de 2025 em França não será uma realidade. “O experimento foi quantificado, a ANSM forneceu os dados à IQVIA, eles foram analisados por especialistas e os resultados são fantásticos. A ANSM insiste que esses resultados são fidedignos. Por isso estamos optimistas, que a canábis medicinal vai ser uma realidade no sistema nacional de saúde. Mas não em Janeiro de 2025”.
O empresário acrescentou que, apesar de existirem cerca de 800.000 pacientes de canábis medicinal em França, apenas 1.800 continuam a participar no experimento inicial. “Precisamos de mais prescrições e de mais médicos a prescrever”, afirmou, porque “há um enorme potencial para a canábis medicinal”.
Péribére concordou ainda que a comparticipação é vital para o sucesso da canábis medicinal no país. “Claro que tem que haver reembolso, por isso [a canábis medicinal] tem de ser avaliada segundo critérios científicos. Esta é uma questão política, porque as pessoas estão a pagá-la com os seus impostos. A prova de eficácia é o próximo passo e precisamos disso no contexto científico e medicinal”.

Sheri Orlowitz, Presidente do Conselho Federal de Regulamentação da Canábis dos EUA
Sheri Orlowitz, Presidente do Conselho Federal de Regulamentação da Canábis dos Estados Unidos da América (EUA), trouxe ao painel a experiência dos EUA e as perspectivas da legalização recreativa a nível federal. O Conselho que representa (CFCR) é composto por profissionais da indústria da canábis, cientistas da FDA, profissionais da áreas governamentais, direito e equidade social e tem trabalhado para uma regulamentação total da planta em todos os estados dos EUA.
O compromisso de Sheri com a justiça social levou-a, há 25 anos, a fundar uma organização sem fins lucrativos para combater o tráfico de seres humanos, bem como a fazer parte do Conselho de Liderança Feminina da Universidade de Harvard.
Levou-a também ao envolvimento com o Marijuana Policy Project, o principal grupo de defesa de políticas públicas dos EUA, cujo trabalho é em grande parte responsável pela ‘indústria da canábis’ norte-americana e pela promoção da segurança dos consumidores.
“O que fazemos é aumentar a prosperidade das pessoas que foram desproporcionalmente afectadas pela guerra contra as drogas, para que haja justiça social”.
No entanto, e apesar das perspectivas e experiências mais avançadas de Orlowitz, num debate moderado pelo também norte-americano Andrew De Angelo, Hugues Péribére alertou que a discussão sobre canábis em França é “apenas medicinal”, deixando claro que o país ainda não está preparado para uma discussão sobre o uso adulto ou recreativo.
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Nota do Editor: Este artigo foi alterado no dia 29 de Outubro de 2024 às 14:45 para incluir declarações da paciente Valerie Vedere, que participou num outro painel do evento, e onde recordou os direitos dos doentes que querem ter acesso à planta através do auto-cultivo como parte integrante do seu tratamento.
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[Aviso: Por favor, tenha em atenção que este texto foi originalmente escrito em Português e é traduzido para inglês e outros idiomas através de um tradutor automático. Algumas palavras podem diferir do original e podem verificar-se gralhas ou erros noutras línguas.]____________________________________________________________________________________________________
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Licenciada em Jornalismo pela Universidade de Coimbra, Laura Ramos tem uma pós-graduação em Fotografia e é Jornalista desde 1998. Vencedora dos Prémios Business of Cannabis na categoria "Jornalista do Ano 2024", Laura foi correspondente do Jornal de Notícias em Roma, Itália, e Assessora de Imprensa no Gabinete da Ministra da Educação do XXI Governo Português. Tem uma certificação internacional em Permacultura (PDC) e criou o arquivo fotográfico de street-art “O que diz Lisboa?” @saywhatlisbon. Co-fundadora e Editora do CannaReporter® e coordenadora da PTMC - Portugal Medical Cannabis, Laura realizou o documentário “Pacientes” em 2018 e integrou o steering group da primeira Pós-Graduação em GxP’s para Canábis Medicinal em Portugal, em parceria com o Laboratório Militar e a Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa.
