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Como o Brasil se posiciona para ser uma das próximas potências mundiais da canábis medicinal

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Foto: D.R. | Pothead Media
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Com mais de 670,000 pacientes registados e cerca de 50,000 médicos a prescrever canábis para fins medicinais, o Brasil posiciona-se para se tornar um dos maiores produtores de canábis medicinal a nível mundial, “assim sejam definidas as regras pela Anvisa”. Nesta reportagem, realizada após visitar o 4º Congresso de Canábis Medicinal, que decorreu em paralelo com a Expo Medical Cannabis Fair, em São Paulo, analisamos o potencial que o Brasil tem para se tornar uma das próximas potências da canábis a nível mundial. Falámos com empresários, médicos, enfermeiros, advogados, associações e investigadores para explorar as oportunidades e os desafios que este gigante enfrenta em termos de competitividade: sendo o maior obstáculo a proibição das flores e do THC.

No Brasil, tudo aconteceu em grande e ao contrário da Europa: antes mesmo de existir uma lei para regulamentar o sector, a movimentação social e a necessidade premente de acesso de milhares de pacientes a canábis com fins terapêuticos mobilizaram toda uma indústria, que floresceu mesmo antes que a Anvisa — a Agência de Vigilância Sanitária do Brasil —, conseguisse definir as regras.

De acordo com os dados mais recentes da Kaya Mind, há mais de 670,000 pacientes a utilizar canábis medicinal no Brasil. Mais de 50,000 médicos já prescreveram canabinóides pelo menos uma vez, sendo que, actualmente, cerca de 10,000 médicos prescrevem canábis aos seus pacientes com frequência. Uma entrevista com Maria Eugénia Riscala, uma das fundadoras do grupo Kaya, será publicada em breve.

A convite do Sechat, um portal de informação sobre canábis que além de uma academia de formação também organiza eventos nesta área, o CannaReporter® participou este ano na 4ª edição da Expo Medical Cannabis Fair e no Congresso de Canábis Medicinal, em São Paulo, de 22 a 24 de Maio de 2025. Esta foi uma oportunidade única para entender melhor o que se passa no Brasil, falar com vários intervenientes e perceber como a indústria tem avançado nos últimos anos. E a situação actual com que nos deparámos é surpreendente.

“As regras para o cultivo de canábis no Brasil deverão ser anunciadas pela Anvisa em Setembro, algo que é aguardado com muita expectativa por toda a indústria brasileira”

Mais de 800 pessoas participaram no Congresso, que se dividiu em seis módulos, dos quais quatro dedicados à área da saúde: Odontologia, Veterinária, Agronegócios e B2B — e onde palestraram 150 oradores e especialistas. Na feira, encontravam-se cerca de 50 expositores, maioritariamente marcas de óleos de CBD e associações de pacientes, a representar mais de 100 marcas, oriundas do Brasil, Estados Unidos, Paraguai, Colômbia ou Uruguai.

Daniel Jordão, co-fundador do Sechat, que organiza este evento desde 2022, disse ao CannaReporter® que a Medical Cannabis Fair é agora uma feira científica e profissional que combina os dois mundos: “A qualidade do evento melhorou muito. Combinamos dois mundos que não são fáceis, o medicinal / científico e os profissionais da indústria, mas a melhoria é contínua, apesar de termos sempre coisas para aperfeiçoar. Temos conseguido muito sucesso ao equilibrar bem esses dois mundos e crescermos todos juntos”, referiu.

Participação de médicos dispara, enquanto indústria aguarda que a ANVISA publique regras para o cultivo

Este ano, o Congresso cresceu 25% relativamente ao número total de inscrições do ano passado. “Tivemos duas vezes e meia mais dentistas e o registo de veterinários e farmacêuticos mais do que duplicou. Em relação aos médicos, tivemos mais 60% do que no ano passado”, congratulou-se. Este aumento da procura de informação por parte dos profissionais de saúde está relacionado “não só com o facto de quererem aprender mais, mas também com a possibilidade de terem contacto com o mercado”, referiu Jordão. “A Anvisa autorizou os veterinários a prescrever no ano passado, o que os deixou com mais vontade de aprender. Além disso, as farmácias de manipulação [a trabalhar com canábis] também estão a crescer muito: num universo total de 8,000 farmácias de manipulados, mais de 200 já estão a trabalhar com canábis”, esclareceu.

Daniel Jordão e Fernando Pensado fundaram o portal de informação sobre canábis Sechat em 2019, juntamente com o neurocirurgião Pedro Pierro. Foto: Laura Ramos | CannaReporter®

Mas a maior oportunidade de crescimento no Brasil está, segundo Daniel Jordão, no cultivo: “Há uma expectativa muito grande na parte do cultivo, equipamentos, toda a tecnologia que envolve a produção da planta. Essa vai ser uma óptima vertente de crescimento para o Brasil, com novos negócios. Acredito que esse é um mercado que terá muito potencial”, referiu, “assim sejam definidas as regras pela Anvisa”, acautelou.

As regras para o cultivo de canábis no Brasil deverão ser anunciadas pela Anvisa em Setembro, algo que é aguardado com muita expectativa por toda a indústria brasileira. O primeiro prazo para apresentar a revisão da RDC 327, de 2019, terminou a 19 de Maio, mas a Anvisa pediu um novo adiamento, depois de uma primeira tentativa recusada pelo tribunal.

Existe uma curiosidade muito grande, por parte de todos os profissionais da indústria da canábis no Brasil, para saber como vai ser esta nova lei, principalmente por parte das associações, muitas delas a cultivar actualmente na base da desobediência civil ou de um habeas corpus — uma autorização especial concedida por um juiz.

No entanto, há uma questão interessante a salientar no mercado da canábis medicinal no Brasil: se os óleos de CBD proliferam enquanto medicina reconhecida, com dezenas de marcas e associações a vender óleos ricos em canabidiol, as flores e o THC ainda são proibidos (e algo mal vistos), essencialmente pela associação que a sociedade faz ao facto de se poderem “fumar como a maconha”. Não é, portanto, expectável que o comércio de THC ou de flores, mesmo que apenas de CBD, seja autorizado ou regulamentado pela Anvisa. Este será, portanto, um dos maiores desafios do Brasil se quiser competir com outros países. Contudo, muitas das associações brasileiras já cultivam variedades e fazem extractos com THC para os seus pacientes.

A importância dos tribunais na luta pelo acesso à canábis no Brasil: mais de 7,000 habeas corpus concedidos

Antes de tentar perceber como tudo acontece no Brasil, é importante perceber o papel dos tribunais e o reforço que os juízes trazem à luta pelos direitos fundamentais dos cidadãos, através de mobilizações sociais e industriais sem precedentes e em larga escala. E, ao contrário de Portugal, no Brasil os juízes pronunciam-se bastante rápido sobre os casos levados aos tribunais, principalmente se houver pacientes em sofrimento, tal como nos explicou Daniel Jordão, do Sechat. “As farmácias de manipulação, que inicialmente não estavam autorizadas a manipular canabinóides, foram para a justiça e ganharam. Quando o assunto é saúde, principalmente acesso a remédios, e o argumento é que o paciente está a sofrer, aí o juiz tende a ser mais rápido e a proferir uma decisão favorável”, refere Jordão.

O advogado brasileiro Emílio Figueiredo. Foto: Laura Ramos | CannaReporter®

Emílio Figueiredo, advogado pioneiro no pedido de habeas corpus, uma figura jurídica que permite conceder autorizações especiais de cultivo a pacientes e associações de canábis que não têm meios financeiros ou outra forma de acesso a esta terapia, diz que as autorizações dispararam nos últimos anos:

“Os pedidos, que começaram em Novembro de 2016, são hoje mais de 7,000 decisões favoráveis. Inclusive com jurisprudência favorável no Superior Tribunal de Justiça, que cuida de questões infra-constitucionais no Brasil”, contou ao CannaReporter® Emílio Figueiredo.

A advocacia tem um papel importante neste cenário particular do Brasil. “A Rede Reforma actualmente compõe o Conselho Nacional de Política de Drogas e segue sendo uma referência no activismo contra a violência de Estado no Brasil. Além da Reforma, há mais de 400 advogadas e advogados que se articulam num grupo de WhatsApp para realizar a litigância estratégica para avançar na consolidação de direitos em torno, principalmente, da canábis”, refere.

As associações de pacientes, que tiveram a sua primeira fundação em 2014, com a Abrace Esperança, são hoje mais de 300. “Vinte dessas associações já obtiveram medidas judiciais que protegem o seu cultivo. E outras dezenas estão cultivando sob os auspícios da desobediência civil”, explicou Figueiredo ao CannaReporter®.

O CannaReporter® falou ainda com Cassiano Teixeira, da associação Abrace Esperança, e com a Enfermeira Luciana, que tem desenvolvido um trabalho notável no tratamento de crianças com epidermólise bolhosa, e publicará estas duas entrevistas em separado.

A preparação do terreno para o cultivo: o papel determinante da Embrapa

O 4º Congresso da Canábis Medicinal de São Paulo realizou-se em parceria com a Embrapa, uma empresa governamental de agricultura e pecuária que tem uma história muito importante no Brasil. Toda a investigação de genética, estudos de espécies, todo o agronegócio brasileiro é muito baseado nas pesquisas e estudos feitos pela Embrapa, que mantém em Brasília e noutros locais do Brasil várias câmaras frigoríficas com o stock de todas as genéticas e um banco de variedades, como um backup para o futuro.

A Embrapa também criou um grupo de estudo dedicado à canábis, para pesquisar a planta no Brasil e como ela se comporta no ambiente específico do país.

Beatriz Emygdio, presidente do Comité Permanente de Assessoria Estratégica da Canábis na Embrapa. Foto: Laura Ramos | CannaReporter®

Beatriz Emygdio é bióloga e investigadora na área de genética e melhoramento de culturas anuais, além de presidente do Comité Permanente de Assessoria Estratégica da Canábis, recentemente criado pela Embrapa. Com um Mestrado em Melhoramento de Plantas e doutorada na área de Sementes, Beatriz vai coordenar, em parceria com outros colegas e outras unidades, o projecto de melhoramento de plantas para fins medicinais.

Em entrevista ao CannaReporter®, Beatriz explicou que a cultura da canábis está a ser inserida no portfólio de pesquisa da Embrapa: “Temos recebido muitas demandas nessa área. Este comité introduz o tema dentro da empresa de uma forma positiva, porque este é um assunto que ainda gera muita polémica”, referiu.

A Embrapa é uma empresa do governo, vinculada ao Ministério da Agricultura, que está fisicamente presente em todas as regiões do Brasil, com 43 centros de pesquisa, e que actua no desenvolvimento de tecnologia e inovação para a agricultura brasileira em benefício da sociedade.

A decisão de actuar no segmento da canábis aconteceu, segundo Beatriz Emygdio, porque “a empresa entendeu que existiam duas questões importantes no Brasil: uma ligada à questão da saúde pública e outra ligada à questão da soberania nacional. Nós temos hoje quase 700 mil pessoas a fazer uso regular de canábis medicinal no país e não temos ainda a possibilidade de cultivo, porque ele ainda não foi regulamentado. Então, temos uma situação de total dependência externa: a importação de sementes para as associações que fazem esse cultivo mediante autorização judicial, e a dependência da importação da matéria prima ou dos produtos acabados para esse uso medicinal. Nós entendemos que é uma questão estratégica em que a Embrapa pode contribuir para o desenvolvimento de ciência e tecnologia, para que se possam estabelecer cadeias produtivas nacionais, tendo em vista que estamos com o processo de regulamentação do cultivo previsto para ser liberado em Setembro desse ano. Acreditamos que até ao final do ano teremos as regras e que a partir daí podemos começar a fazer cultivos nacionais. E para que se tenham cultivos competitivos e adaptar os cultivares às diferentes regiões brasileiras, é necessário que se faça pesquisa, que se faça ciência de qualidade, para que se possam desenvolver as tecnologias necessárias às condições brasileiras”, explicou.

A canábis sempre foi cultivada no Brasil de forma ilegal e clandestina. “Existem variedades que sempre foram cultivadas dessa forma e há também comunidades tradicionais indígenas: a Anvisa contempla inclusive essas comunidades. Nos surpreendeu o documento fazer menção a essas comunidades, era necessário organizar de alguma forma um resgate para que esses materiais pudessem ser caracterizados e aproveitados num processo de melhoramento formal”, disse Beatriz Emygdio.

Beatriz gostaria que a regulamentação da Anvisa contemplasse não só as indústrias mas também os pequenos agricultores. “Acredita-se que, numa primeira fase, não vá ser possível, mas nós defendemos que sim. Existe uma grande expectativa neste sector, todos querem entrar nesse cenário, então é uma frustração muito grande deixar que esses cultivos sejam de uso exclusivo de indústrias farmacêuticas. Também gostaríamos que o cultivo associativo, que é bastante forte no Brasil, fosse contemplado nessa regulamentação. Temos muitas associações fazendo esse papel que o estado não assumiu até então: são quase 100 mil pacientes atendidos com os medicamentos produzidos nessas associações, que nós chamamos de cultivo associativo. Temos ainda a expectativa que essa regulamentação também traga enquadramento para fins científicos e que possamos ter as instituições científicas regulamentadas para fazer esse trabalho de pesquisa. Isso hoje não existe. Actualmente é necessário submeter os projectos à Anvisa, mas há muitas universidades a querer entrar neste ramo e a agência não está a ter condições de atender essa demanda. É preciso que a ciência e a tecnologia sejam desenvolvidas de forma igualitária para todas as instituições e que não tenhamos toda essa burocracia”, alertou.

Como a planta da Canábis, no seu todo, pode mudar o Brasil?

Há uma segunda linha de expectativa muito grande para a indústria da canábis no Brasil, que é criar também a regulamentação do cultivo de cânhamo para fins industriais. “Já temos empresas no país que estão a importar tecido chinês e a desenvolver produtos e marcas próprias no Brasil, então tem todo esse potencial ambiental, de sustentabilidade, de regeneração de áreas degradadas, de desenvolver uma série de produtos como o hempcrete. Há muitas indústrias que podem beneficiar deste sector e estamos a perder espaço para o mundo. Temos um potencial incrível, temos vontade, temos recebido na Embrapa muitas demandas de empresas que querem fazê-lo e há muitas possibilidades industriais em muitas áreas. É preciso destravar essas possibilidades o mais breve possível”, disse a presidente do Comité da Canábis.

Curiosamente, em Agosto de 1996, e ainda longe de imaginar o que estaria para vir, Beatriz publicava no Jornal brasileiro ‘Diário Popular’ uma reportagem a defender o uso da canábis para fins industriais. “Foi há quase 30 anos e ainda estamos a trilhar esse caminho! Não conseguimos ainda avançar como deveríamos”, lamentou.

Beatriz Emygdio acrescentou que a canábis é um tema que sempre desperta muito interesse, porque há a questão do estigma, mas há também um lado educativo que cada vez ganha mais força. “À medida que as pessoas entendem que têm um sistema endocanabinóide e como ele funciona, isso muda a sua percepção. Temos que investir em educação! É um processo lento e longo, mas a semente está posta e o Brasil não volta atrás. Este evento é uma demonstração disso: muitas empresas já existem no país e muitas estão a querer vir. É uma questão de ir desmistificando o tema, à medida que as coisas vão evoluindo”.

A representante da Embrapa não tem a menor dúvida que o Brasil vai ser um player importante no cenário mundial da canábis: “Temos todas as condições climáticas, temos vontade, temos pessoas querendo que as coisas aconteçam, produtores interessados, indústrias interessadas… então tudo vai depender se nos permitirem fazer e o tamanho que vão nos permitir. Vai depender dessa legislação que teremos em breve”, antecipou.

Falámos ainda com Mercedes Ponce de Léon, uma activista e consultora do Uruguai que tem participado assiduamente em eventos no Brasil, e publicaremos essa entrevista em separado.

Médicos: da prescrição à utilização

Eduardo Faveret, neuropediatra, alertou para a necessidade da criação de um Centro de Epilepsia em 2000, quando recebeu o filho de um secretário nacional de saúde. “Melhorar a qualidade de vida das pessoas com epilepsia sempre foi a minha missão”, contou ao CannaReporter®. Demorou sete anos a criar o Instituto Estadual do Cérebro Paulo Niemeyer e dentro desse instituto foi criado o Centro de Epilepsia. Foi mais ou menos em 2013 que Faveret prescreveu canábis pela primeira vez. A paciente era Sofia, filha de Margarete e Marcos, os fundadores da APEPI, uma das primeiras associações de canábis medicinal do Brasil. “Trouxeram uma seringa de canábis da Califórnia, ela e outra mãe, a Aline, e desafiaram-me a prescrever canábis. Como ainda não estava regulamentado, havia um risco profissional associado, até de perda de CRM (Conselho Regional de Medicina, a carteira profissional), mas tendo em conta os estudos de pesquisa básica, pela necessidade daquelas crianças, o canabidiol parecia uma substância muito segura, muito pro-saúde, com efeitos anti-inflamatórios, anti-oxidantes, anti-cancerígenos e por aí… tudo o que eu estudava ficava assim: ‘nossa, que coisa incrível’. Tinha acabado de chegar a primeira seringa de canabidiol no Brasil, então decidimos estudar bem a dosagem e fomos devagar. As crianças melhoraram bastante na conexão delas — eram crianças também autistas —, melhoraram na frequência de crises epilépticas e, claro, um bom começo é sempre algo muito motivador para continuar”, recordou o médico.

O neuropediatra Eduardo Faveret foi um dos primeiros médicos prescritores de canábis no Brasil e orador do Congresso. Foto: Laura Ramos | CannaReporter®

Faveret recordou ainda o documentário “Ilegal”, que começou a divulgar várias histórias de famílias a tentar aceder ao CBD. “No início era tudo mais complicado, mas realmente havia poucos médicos e eu me tornei assim num clínico geral da canábis. Vinham ter comigo pessoas com todo o tipo de patologias, artrite reumatóide, cancer, glaucoma, doença inflamatória intestinal… e eu fiz parcerias com especialistas nessas áreas em que todos fomos aprendendo e re-estudando a medicina de uma forma mais ampla, redescobrindo a fisiologia do corpo humano a partir do SEC”, relembra.

Houve uma ligação muito forte dos médicos com as associações, que desde logo foram ajudadas por advogados e pela rede reforma. Hoje, Eduardo Faveret acompanha quase 5,000 pacientes no Brasil.

“A canábis acaba agregando todos os sectores da canábis e é muito interessante ver a mudança da sociedade. Um pastor evangélico que participava nas marchas contra as drogas mudou radicalmente de opinião ao ver os benefícios da planta no próprio filho. Acabou por admitir que a canábis salvou a vida do filho: e no caso até nem foi o canabidiol, foi o ‘amaldiçoado’ e ‘demonizado’ THC… foi ele que salvou o filho do pastor”, contou Eduardo Faveret, que acrescentou que o óleo que mais se utilizava no início nas associações era o Harletsu, um cruzamento entre Harlequin e Tsunami: “Funcionava muito bem na epilepsia, era um óleo 1:20 (THC / CBD), o mais testado por Israel no autismo”, referiu.

Maria José Ribeiro é médica, especializada em ultra-sonografia, e veio ao congresso com a filha Angélica Ribeiro, advogada. Ao CannaReporter® disse: “Sou prescritora de canábis e venho aqui para me actualizar, conhecer os laboratórios, o funcionamento [da canábis medicinal]. Acho importante estar aqui, pois há sempre muitas novidades e aprende-se muito nestes congressos”. Mas além de médica, Maria José também é paciente e faz uso pessoal da canábis com fins terapêuticos. “Descobri a canábis para meu uso pessoal há cerca de cinco anos, quando comecei a utilizar para a dor. Tinha uma dor crónica generalizada que não era fibromialgia e experimentei começar a usar. Tive muitas melhoras! Uso full spectrum, THC e CBD na mesma proporção (1:1). A médica conta que ficou “muito surpreendida” com os resultados: “Pelo menos em mim funcionou de um dia para o outro, foi incrível. Infelizmente não é assim com todas as pessoas, cada paciente responde de uma forma diferente, mas no meu caso notei melhoras logo no dia seguinte”. Actualmente, Maria José, que vive em São Paulo, acompanha os seus doentes pelo menos uma vez por semana, para ajustar a dose, e atende essencialmente por telemedicina.

A filha de Maria José, Angélica Ribeiro, é advogada e apesar de sofrer de paralisia cerebral trabalha para levar a canábis a quem não tem condições de a comprar. “Peço liminares para o sistema público pagar a esses pacientes, judicializo processos para ajudar os pacientes a ter acesso a este tipo de tratamento”, referiu ao CannaReporter®. Mas Angélica também usa canábis, para ajudar a tratar uma depressão. “Em 10 dias notei melhorias que nunca tinha notado com medicamentos e já queria deixar de tomar anti-depressivos. Nasci prematura, de 5 meses, e fiquei com paralisia cerebral, além de uma deficiência auditiva. Nessa parte ainda não percebi grandes melhoras, mas tenho esperança que também audição possa melhorar”, contou.

O CannaReporter® entrevistou ainda o cirurgião dentista Nivaldo Vanni e publicará essa entrevista em separado.

A importância da ciência para classificar as genéticas landrace do Brasil

No Congresso falámos também com Sérgio Rocha, especialista em melhoramento genético de canábis. Já na adolescência era curioso pela planta, mas começou a estudar para ter argumentos sobre os seus benefícios. Antes de se formar em Agronomia, Sérgio já tinha uma licenciatura em Geografia, que lhe trouxe um olhar mais abrangente da parte das ciências humanas sobre a legalidade e o impacto da sua proibição na saúde pública e na segurança dos cidadãos.

“Quando estava a meio do curso de Agronomia, em 2015, tive conhecimento da luta das mães brasileiras para importar medicamentos e foi aí que soube que tinham conseguido autorização para cultivar canábis. Isso fez-me olhar para outros países, de forma a tentar perceber como estavam a tratar a canábis e muitos deles já estavam a tratar da planta como uma commodity agrícola: China, Alemanha, Canadá, Israel… e como o Brasil depende do agronegócio — é uma grande fatia da nossa economia —, cheguei à conclusão que também precisávamos de gerar tecnologia para colocar o nosso país no mapa e ser competitivo na área da canábis. Então, propus fazer o trabalho de conclusão do curso sobre como introduzir a canábis oficialmente como uma cultura agrícola. A partir daí comecei a ser orientado sobre como delinear os primeiros passos para criar um programa de melhoramento genético no Brasil”, contou.

Mas nem tudo foi fácil. “A minha universidade (a Federal de Viçosa) é muito tradicional e existiram barreiras, mas sempre deixei muito claro que estávamos a falar de uso industrial e medicinal, sempre tentando mostrar o potencial económico”. O trabalho acabou por ser aceite na universidade. “Foi o primeiro! Conseguimos uma autorização das agência públicas para fazer o primeiro cultivo oficial de pesquisa no Brasil. Mas a ANVISA negou a autorização. Então, uma acção na justiça conseguiu essa autorização e, nesse seguimento, desde 2020, há mais universidades a fazer pesquisas focadas na agronomia e cultivos a pensar no melhoramento genético”, explicou Sérgio.

O investigador Sérgio Rocha, um dos oradores do Congresso. Foto: Laura Ramos | CannaReporter®

“Em 2018 propusemos um modelo através de programação, modelos computacionais de como seria o comportamento da planta no Brasil e fizemos um mapa mostrando as áreas com maior aptidão para o cultivo. Chegámos a um resultado de que cerca de 80% das áreas para agricultura no Brasil têm boa ou alta aptidão para o cultivo de canábis, então o Brasil pode tornar-se o maior produtor de canábis a nível mundial”, garantiu Sérgio Rocha.

“Testamos vários materiais genéticos, vários genótipos e variedades. O que a gente tem percebido é que mesmo aquelas variedades que trazemos de outros países, com baixa concentração de THC, pelo facto de estarmos num país tropical, com alta radiação ultravioleta e temperaturas mais elevadas, essas plantas produzem THC um pouco mais elevado. No Brasil, a proposta que existe é que se mantenham apenas cultivos de plantas com menos de 0,3% de THC, mas isso vai ser praticamente inviável de ser realizado. Em outros países já foi problema, mas a questão é que nós estamos a alertar antes. Não podemos negar o potencial medicinal do THC, mas no Brasil, infelizmente, nem tudo é pautado pela ciência. Vai ser muito difícil incluir valores elevados de THC nesse momento, duvido que sejam liberadas plantas com mais de 1% de THC. E mesmo 1% ou 2% já seria interessante para tratar o cânhamo, mas eu acho muito improvável que aconteça nesse momento, por causa dessa barreira moral que ainda existe no Brasil”, lamentou.

O investigador falou ainda das variedades landrace do Brasil e do seu interesse em pesquisar estas genéticas. “São variedades crioulas e existem populações que ainda mantêm essas plantas, mas é necessário fazer estudos agronómicos para verificar a uniformidade e estabilidade desse material. Ou seja, quais são as características químicas e morfológicas, para ver se existe uma variedade realmente nacional. É pegar nessa informação popular e fazer um trabalho com tecnologias agronómicas para poder caracterizar onde está esse material e como ele se comporta. Nós sabemos que existem, há muitos anos, comunidades tradicionais que mantêm variedades, como a famosa manga rosa, a popularmente chamada ‘rabo de raposa’. Há um documentário muito interessante que se chama “Dirijo”, que mostra que nas comunidades tradicionais indígenas brasileiras o uso da canábis era comum e uma tradição. Num determinado momento histórico, a FUNAI, que é o órgão responsável por tratar dos assuntos indígenas, impôs que deveria ser retirada e proibiu o seu cultivo. Então, sabemos que esse já era um hábito dos nossos indígenas e populações negras, como os escravos, e acredito que sim, que existam plantas mais adaptadas às nossas condições, embora talvez não tenham a mesma qualidade em relação à concentração de canabinóides do que hoje vemos no mercado. Mas é muito importante termos acesso e manter esse material, porque ele tem características importantes para a gente adaptar essas variedades à nossa realidade”, refere.

Sérgio foi um dos oradores do Congresso e apresentou uma nova empresa, a Canálise, um laboratório para fazer análises de qualidade dos produtos que hoje existem no Brasil. “Essa é uma carência latente no país. Temos milhares de pessoas autorizadas a cultivar e dezenas de associações, mas poucas ainda têm acesso a fazer uma análise da composição daquele material, com a concentração de canabinóides e terpenos. Estamos a propor fazer estas análises com um custo mais reduzido, para se aproximar à realidade brasileira. Essa é uma vantagem para o próprio paciente, saber o que está a tomar, mas também para os médicos poderem orientar melhor nas formulações. Através da Canálise, vamos tentar resolver um pouco o problema da falta de informação e da qualidade do material que tem circulado no país”, refere.

Se pudesse decidir, Sérgio diz que seria necessário pensar de forma ampla. “Não adianta tentar proibir uma planta que tem múltiplos usos. Não é porque algumas pessoas fazem um uso que não seja bom para si mesmo que nós vamos limitar toda a restante população de ter acesso a essa planta. Temos que pensar numa legalização ampla da planta, independentemente de níveis de THC, seja para a indústria, uso pessoal, adulto, recreativo… é uma planta segura, a gente não vê pessoas morrendo por causa de uso de canábis, mas enquanto isso temos outros medicamentos na farmácia, que nem precisam de receita para comprar, e que têm doses letais. É uma contradição muito grande, mas acho que temos que fazer isso com responsabilidade e informação, para também não gerar um tipo de contra-informação que vai acabar por criar ainda mais preconceito. Existem muitas pessoas com uma barreira moral enorme e acho que temos que ser estratégicos até no momento de colocar isso para a população, com campanhas para evitar o uso precoce e abusivo, e também falar às comunidades que sofreram tanto com a proibição, para que se possam melhorar as condições dessa população. Então, tem que ser um debate amplo, assim como a legalização também tem que ocorrer de uma forma ampla”, sugeriu.

Revivid democratizou acesso ao CBD, reduzindo o preço

Keyla Santos fundou a Revivid em 2013 quando ainda vivia nos Estados Unidos, onde trabalhava num dispensário. Hoje é uma das maiores marcas de CBD do Brasil e o principal patrocinador da Medical Cannabis Fair. Tudo começou quando as mães procuravam CBD para o tratamento da epilepsia e queriam trazer canábis para o Brasil e utilizá-la como um medicamento.

A primeira mãe foi Cidinha, da associação Cultive, que conseguiu um habeas corpus para cultivar canábis para a filha, que tem Síndrome de Dravet. Keyla ajudou a encontrar uma extracção rica em CBD e levou o óleo para algumas famílias. Daiane Zappe, que trabalha na comunicação da Revivid, conta ao CannaReporter® como aconteceu: “Na altura havia um grupo de mães que falava no Orkut, ainda não havia Whatsapp nem Instagram. A Keyla veio, mas foi barrada no aeroporto e chegou a ser presa. No entanto, devido à necessidade e emoção, conseguiu liberar e chegar às famílias. Foi assim que começou a investir e a melhorar os produtos. Hoje em dia a Revivid tem vários tipos de CBD, 1000, 2000, 3000, 6000 e até 12000 mg de CBD por frasco. Também melhorou o custo de produção, que era muito alto. A gente conseguiu democratizar o acesso reduzindo os valores”, conta Daiane.

Actualmente, a Revivid acompanha cerca de 5,000 pacientes com autorizações de importação no Brasil. “O paciente tem que ter uma receita e recebe o óleo em casa, mas é importado da Califórnia. Os pacientes que mais recorrem à Revivid são os que têm epilepsia e autismo, mas também a dor crónica, o cancro ou a ansiedade e a depressão”, esclareceu Daiane.

“Quem tem dor tem pressa”

Daiane também começou a usar CBD num dos seus filhos, que nasceu prematuro e desenvolveu vários problemas de saúde, incluindo epilepsia. Ao CannaReporter® contou como acabou por se envolver pessoal e profissionalmente com a canábis.

Daiane Zappe, do departamento de comunicação da Revivid Brasil. Foto: Laura Ramos | CannaReporter®

“Tive um parto gemelar prematuro em 2011, mas um dos meu filhos nasceu com muitas complicações de saúde, incluindo convulsões derivadas da epilepsia. Comecei a pesquisar nessa altura e encontrei a Cidinha e outras mães que também tinham crianças com epilepsia e que conseguiam controlar as crises com canábis. Para mim, foi uma esperança”.

A médica que acompanhava o filho de Daiane não foi contra utilizar canábis, disse aliás que não havia problema nenhum, porque não tinham mais o que usar. Com a autorização da médica, em 2014, quando ainda era proibido e não existia autorização da ANVISA, Daiane teve acesso ao tratamento com CBD da Revivid. “Mas quantas famílias não tiveram?”, questionou. “Hoje, olhando para trás, eu vejo que foi um tratamento paliativo, foi um uso compassivo”.

A representante da Revivid conta que logo na primeira semana de uso do CBD notou melhoras óbvias no seu filho: “Ele começou a olhar-nos nos olhos, algo que já não fazia”. O filho de Daiane faleceu aos quatro anos e meio, em 2016, devido a uma embolia: “Ele estava na melhor fase da vida, era um ano sem hospitalização, voltou a falar, a frequentar a escola e eu estava super feliz. Foi óptimo ver o meu filho voltar a ser criança. Graças ao CBD ele passou de 100 crises por dia para zero. Mas infelizmente Deus tinha outros planos para nós”, lamentou, comovida.

“Comecei ilegal até ter uma autorização excepcional para importar. Mas a dificuldade era ter uma receita, porque se os médicos não sabiam, como iam receitar? Desde 2014 que estamos nesta luta, são 11 anos em que vamos avançando, não na velocidade que a gente queria, porque quem tem dor tem pressa, mas aos pouquinhos vamos avançando”, concluiu.
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Nota do Editor: O CannaReporter® viajou para São Paulo a convite do Sechat, que organizou este ano a 4ª edição da Medical Cannabis Fair e do Congresso Brasileiro de Canábis Medicinal.

 

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[Aviso: Por favor, tenha em atenção que este texto foi originalmente escrito em Português e é traduzido para inglês e outros idiomas através de um tradutor automático. Algumas palavras podem diferir do original e podem verificar-se gralhas ou erros noutras línguas.]

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Licenciada em Jornalismo pela Universidade de Coimbra, Laura Ramos tem uma pós-graduação em Fotografia e é Jornalista desde 1998. Vencedora dos Prémios Business of Cannabis na categoria "Jornalista do Ano 2024", Laura foi correspondente do Jornal de Notícias em Roma, Itália, e Assessora de Imprensa no Gabinete da Ministra da Educação do 21º Governo Português. Tem uma certificação internacional em Permacultura (PDC) e criou o arquivo fotográfico de street-art “Say What? Lisbon” @saywhatlisbon. Co-fundadora e Editora do CannaReporter® e coordenadora da PTMC - Portugal Medical Cannabis, Laura realizou o documentário “Pacientes” e integrou o steering group da primeira Pós-Graduação em GxP’s para Canábis Medicinal em Portugal, em parceria com o Laboratório Militar e a Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa.

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Reading Time: 3 minutesNos dias 11 e 12 de Setembro, o museu La Cité du Vin, na pitoresca cidade francesa...

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Iluminar o futuro: Por dentro do experimento holandês da canábis com a Fluence

Reading Time: 4 minutesO que é o Experimento Holandês? A Holanda mantém há muito uma posição paradoxal em relação às...

Eventos3 semanas atrás

4 Conferências de canábis imperdíveis na rentrée de Setembro e Outubro na Europa

Reading Time: 5 minutesCom o fim das férias de Verão e o regresso ao ritmo acelerado de Setembro, é tempo...

Internacional4 semanas atrás

Reclassificação da canábis nos EUA: o sonho de uns pode ser o pesadelo de outros 

Reading Time: 14 minutesartigo re-editado em 20/08/2025 às 19h10 — “Estamos a analisar a reclassificação; tomaremos uma decisão… nas próximas...

Internacional4 semanas atrás

Como o Brasil se posiciona para ser uma das próximas potências mundiais da canábis medicinal

Reading Time: 19 minutesCom mais de 670,000 pacientes registados e cerca de 50,000 médicos a prescrever canábis para fins medicinais,...

Ciência1 mês atrás

Estudo revela que incapacidade para conduzir depois de utilizar canábis pode durar mais de cinco horas

Reading Time: 4 minutesUm estudo publicado no Journal of Psychopharmacology vem contrariar a percepção dos utilizadores de canábis que acreditam...

Nacional2 meses atrás

Portugal: Nova Associação Portuguesa da Indústria de Cannabis (APIC) realizou ontem a sua primeira Assembleia Aberta

Reading Time: 3 minutesNuma altura em que o sector da canábis em Portugal enfrenta desafios regulamentares e operacionais relevantes, várias...

Internacional2 meses atrás

Turquia: Parlamento aprova venda de canábis medicinal nas farmácias, mas apenas com teor de THC inferior a 0,3%

Reading Time: 2 minutesO Parlamento turco aprovou uma nova legislação para introduzir reformas significativas no sector da saúde, incluindo a...