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Maria João Rezende: “Já pensei ir ao Brasil fazer um workshop de cultivo e extracção”

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Maria João Rezende, 57 anos, licenciada em Enfermagem e Obstetrícia, tinha apenas dois anos quando a irmã, Paula, nasceu. Diagnosticada com epilepsia refractária desde a infância, Paula cresceu entre crises e convulsões, que acabariam por lhe causar outros problemas de saúde e algum atraso mental. Foi já quase aos 50 anos que o canabidiol (CBD) viria a melhorar, substancialmente, a sua qualidade de vida.

Ao longo da vida, Paula sempre fez vários anti-convulsivantes, um “cocktail” enorme de medicamentos, que Maria João achava exagerado, pois não produziam sequer os resultados esperados. Foi por isso que decidiu procurar outras soluções e, em 2016, numa viagem ao Rio de Janeiro, apercebeu-se do debate sobre a administração do CBD a pessoas com epilepsia refractária à medicação. Tudo mudou depois dessa viagem. Foi atrás do CBD, em busca de uma melhor qualidade de vida para a irmã, então com 50 anos. Falámos com Maria João para conhecer um pouco melhor a sua história de vida, como cuidadora de uma irmã com epilepsia.

Esta entrevista apareceu pela primeira vez no documentário Pacientes (excertos) e foi publicada na edição #5 da Cannadouro Magazine.

Quando foi a primeira vez que ouviu falar em canabidiol?
Foi em 2016, quando fui ao Brasil, numa viagem de lazer. Nessa altura estava a ser debatido o uso do CBD no Senado e foi aí que comecei a perceber que havia uma utilização da canábis para fins terapêuticos. Decidi dar a cara e falar, porque penso que as outras pessoas também têm o direito de saber que existe o CBD para melhorar a epilepsia e que a sua disponibilização em Portugal é uma questão premente. Durante alguns anos tive de fazer viagens para ir buscar um medicamento para a minha irmã. Sentia sempre que estava a prevaricar e isso deixava-me um mal-estar acentuado.

Tinha medo de ser “apanhada”?
Tinha sempre receio, porque, como se diz no Brasil, “eu tenho a ficha limpa”, não é? E portanto, poder ser, aos 57 anos, apanhada num aeroporto com um frasco de CBD, seria algo pesado. O dia da viagem era sempre um bocado duro, porque sabíamos que transportávamos frascos de CBD. Tinha uma autorização da Anvisa, conforme podia importar dos Estados Unidos 15 frascos de CBD, mas eu tinha de fazer viagens porquê? Porque tentei pelo correio e chegaram-me alguns frascos assim, mas também ficaram retidos na alfândega.

Maria João tem sido activista na defesa dos direitos dos pacientes que utilizam canábis. Aqui, numa intervenção na Ordem dos Médicos. Foto: Miguel Schmitt | Cannareporter

E quando isso aconteceu, o que fez?
Fui à alfândega e mostrei o documento conforme ia lá levantar uma encomenda. A pessoa que me atendeu foi buscar, mas regressou sem a encomenda e disse que não a podia entregar. Perguntou-me se era um medicamento que estava dentro da embalagem e eu disse-lhe que não. Na altura nem sabia muito bem o que dizer, para não enganar ninguém, mas disse-lhe que não era, e que tinha sido um médico a passar-me a prescrição. Mostrei a documentação, disse que a minha irmã tinha epilepsia, que eu não conseguia arranjar o CBD aqui, expliquei-lhe o que era o CBD e ela pediu-me se podia tirar fotocópias, para mostrar ao chefe, mas ele não autorizou. Cada frasco tinha custado 250 euros, nem era tanto pelo dinheiro, mas porque a minha irmã precisava mesmo daquilo, porque o CBD não pode ser parado de repente. E eu disse o que me ia na alma e apelei ao coração da pessoa que me estava a atender. Disse-lhe que por amor de Deus não me fizesse uma coisa dessas, que a minha irmã tinha epilepsia, que se não me desse a encomenda eu não teria óleo suficiente para fazer o desmame. ‘Eu tenho certeza que se tivesse uma filha ou uma irmã faria o mesmo, por isso peço-lhe encarecidamente que me resolva o problema. Fale com o seu chefe, se for preciso eu pago a multa’. A pessoa disse-me para aguardar e passados uns 20 minutos fez-me sinal e entregou-me o frasco, mas pediu-me que nunca mais voltasse a encomendar pelo correio, porque corria o risco de voltar a ficar com ele retido. A partir daí comecei a ir ao Brasil e aos EUA. Felizmente, agora já consigo mandar vir da Europa. Não sinto que esteja a fazer contrabando ou algo ilegal, faço isto pela minha irmã e pela saúde dela.

Sente-se embaraçada pelo que faz?
Isto é um desafio. Eu dou a cara por mim, mas não quero prejudicar outras pessoas, nomeadamente quem me possa ter ajudado naquela altura. E era porque não as queria pôr nessa situação que tinha de fazer viagens. Ia ao Brasil, ou eu ou o meu marido, porque para diminuir custos às vezes não podíamos ir juntos. O laboratório que fazia o CBD que a Paula tomava não enviava para Portugal, por isso também fomos a Nova Iorque. Combinámos e eles enviaram-nos os frascos para o hotel, por correio. Dessa vez trouxemos seis frascos. Eu trouxe três e o meu marido outros três.

Como se sentiu no aeroporto?
Eu sabia que não estava a fazer nada de mal, mas no início foi sempre complicado. O que eu estava a fazer era apenas uma luta para que a minha irmã tivesse uma melhor qualidade de vida, que graças a Deus tem conseguido ter. Graças ao CBD tem conseguido ter uma redução significativa das crises epilépticas e só por isso arrisquei. Sentia sempre alguma tensão, algum stress, porque sou uma cidadã que normalmente cumpre as regras, que tem ética. Apesar de ter uma autorização da Anvisa e uma prescrição médica, eu sei que esta documentação não é válida na Europa. Mas se me perguntarem alguma coisa, posso sempre mostrar que não estou a fazer contrabando, estou a lutar pela saúde e pelo bem-estar da minha irmã.

Alguma vez foi apanhada no aeroporto?
Não. Felizmente nunca tive qualquer tipo de problema. Os frascos também eram pequenos, não sei se, pelo tamanho, chamavam pouco a atenção.

A mãe de Paula e Maria João era, inicialmente, céptica em relação ao CBD, mas acabou por mudar de ideias quando constatou os benefícios. Foto: Laura Ramos | Cannareporter

Como foi a reacção da Paula ao CBD?
A reacção foi excelente. E só pelo facto de ter sido excelente é que eu arrisco. A Paula tinha cerca de 60 a 80 crises epilépticas por mês, tirando o mal epiléptico. A partir do momento em que começámos a dar o CBD, a Paula teve uma redução significativa das crises. Logo nesse mês passou para 18 e não fez mal epiléptico durante vários meses. Chegou, inclusive, a ter apenas 8 a 9 crises por mês e neste momento está a ter cerca de 16. Também reduziu bastante o peso, estava a pesar mais de 100 kg e com o CBD emagreceu cerca de 30kg, o que contribuiu para melhorar a sua auto-estima.

Como foi a reacção da família ao facto de a Paula estar a tomar um derivado da canábis?
A minha mãe tem 82 anos e no início estava com receio, mas tanto eu como o neurologista já lhe tínhamos dito que não havia muito mais a fazer. A Paula tem dois focos epilépticos e não são passíveis de cirurgia. Foi por isso que decidi recorrer ao CBD. E em boa hora fiz essa escolha! Posso dizer-vos que nunca tinha visto a minha irmã tão bem. Foi um renascer da esperança, perceber que havia algo que não a trata, mas que lhe dá melhores condições de vida, porque viver com isto, todos os dias, é péssimo. Por exemplo, ela ia tomar banho e nós tínhamos de estar ao lado dela, porque podia ter uma crise e cair ou magoar-se, como, aliás, aconteceu várias vezes. Se vamos na rua a passear temos de ter o cuidado de ir ao lado dela, porque ela não pressente as crises e cai redonda no chão. Estar mais de 50 anos numa situação destas é muito complicado. Nem ela tem a liberdade que um ser humano tem direito a ter, nem nós, os familiares, acabamos por estar tranquilos em nenhum lado.

Além da redução do número de crises, que outras melhorias é que verificou na Paula?
Começámos a perceber que ficava muito mais calma. Ela era mais agitada, chegava por vezes a ser intolerante e agressiva. Chegava a levantar a mão para bater no meu padrasto ou na minha mãe. Com o CBD ela está muito mais controlada, mais participativa, ajuda nas tarefas domésticas, tem mais gosto por se arranjar, com o seu q.b. de vaidosa. E isso são melhorias palpáveis, que não podemos negar. Ela acaba por se sentir muito melhor. Nós temos um gráfico onde registamos as crises diárias e ela às vezes vem ter comigo, mostra-me o caderno e com orgulho diz: “Mana, olha: nada, nada” ou “uma”, e isso traz-lhe satisfação também.

Ficou mais autónoma?
Sem dúvida nenhuma. Nós neste momento temos cuidado com ela, mas como sabemos que as crises são mais raras, já não temos aquela necessidade de estar sempre de olho nela e ela assim começa a ter mais autonomia, não é?

Maria João, numa longa espera entre inúmeros telefonemas, para tentar esclarecer como obter o CBD em Portugal. Foto: Laura Ramos | Cannareporter

Na sua opinião, qual seria a situação ideal para Portugal?
Claro que seria a disponibilização do CBD nas farmácias e também haver neurologistas interessados em acompanhar estes casos, nomeadamente quem está a fazer os anticonvulsivantes e o CBD, para que as famílias não se sintam sozinhas. E para que nós possamos, sem medo, porque não estamos a fazer nada de mal, fazer importação ou compra do CBD, sem sentirmos que estamos a prevaricar. Para que não nos sintamos uns “drogados”, ou que estamos a drogar a nossa família. Eu apelo ao bom senso dos nossos governantes e espero que o CBD fique disponível o mais brevemente possível, para bem dos nossos familiares.

Na prática, como gostava que os pacientes acedessem à canábis?
A situação ideal seria poder comprar ou nas farmácias ou em lojas de produtos naturais, desde que tivéssemos uma prescrição para fins medicinais. Mas passaram-se quase quatro anos desde a legalização medicinal e ainda não temos CBD para os doentes no mercado português, temos de o comprar  na Internet. Por outro lado, a falta de comparticipação do Estado na venda das únicas flores de canábis que existem, com THC, para vaporização, também leva a que muitos outros doentes não tenham acesso e estejam à mercê da sua sorte. O Observatório Português de Canábis Medicinal, quando confrontado com esta questão, diz que ainda não há resposta.  Também não se pode cultivar, por isso continuamos todos sem solução à vista.

Maria João e Paula na sua infância

E não teme que, sem a possibilidade de as pessoas cultivarem, o preço seja demasiado elevado nas farmácias?
É evidente que sim e até já pensei ir ao Brasil fazer um workshop de cultivo e extracção. No Rio de Janeiro há uma associação, a APEPI, que acompanha o cultivo, porque há famílias que já estão autorizadas a plantar e a quem foi dada formação para cultivar e fazer a extracção. Porque repare, não são todas as pessoas que têm a capacidade de pagar 250 euros por um frasco de 60 ml, ou 67 euros por um frasquinho de 10 ml, que foi o que paguei agora, com desconto, e que vai dar para pouco mais de uma semana. Eu hoje tenho capacidade financeira para pagar isto, mas não sei se amanhã terei. Por isso, sim, o ideal seria poder plantar e quem quisesse fazia-o para fins medicinais, quem quisesse fazia para fins recreativos. Com regras, claro, com regulamentação.

Pessoalmente, já teve algum contacto com canábis?
Eu não fumo tabaco e nunca fumei um charro! Nunca tive qualquer contacto com drogas, mas respeito quem tem e dou-me com pessoas que fumam canábis, incluindo médicos. Portanto, se nós vivemos numa sociedade livre, cada um deve fazer consigo aquilo que pretende. Não vejo qualquer tipo de problema na canábis e seria um passo muito à frente se realmente houvesse a possibilidade de as famílias plantarem. E se quisessem consumir para os fins ditos recreativos, também deveriam poder, porque nós não podemos ser hipócritas, é muito fácil arranjar canábis! Será justo sermos rotulados de drogados ou criminosos? Ou será que quem vende a preços exorbitantes é que está a cometer um crime?

 

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[Aviso: Por favor, tenha em atenção que este texto foi originalmente escrito em Português e é traduzido para inglês e outros idiomas através de um tradutor automático. Algumas palavras podem diferir do original e podem verificar-se gralhas ou erros noutras línguas.]

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